nós da aviação
A omissão do governo levou o tráfego aéreo
a uma situação de caos que só agora começa
a ser revelada em toda a sua extensão. Como
o número de passageiros no país não pára de
crescer, é preciso adotar soluções quanto antes
Rosana Zakabi e Rafael Corrêa
Mauricio Lima/AE |
Filas no aeroporto internacional de São Paulo: média diária de 100 vôos com atraso acima de trinta minutos e previsão de caos nas festas de fim de ano |
Foi preciso que um Boeing se espatifasse na selva amazônica, sacrificando a vida de 154 pessoas, para que se revelassem as reais condições do controle do tráfego aéreo no Brasil. À medida que vêm à tona os erros que resultaram na queda do vôo 1907 da Gol, no fim de setembro, expõe-se a fragilidade de um sistema que se julgava tão bom quanto os melhores do mundo. Um mês de aeroportos lotados, vôos atrasados ou cancelados, viagens perdidas e autoridades que não fornecem soluções são conseqüência de sérias falhas estruturais e humanas. O mais assustador é o fato de que o colapso do tráfego aéreo no Brasil era uma crise anunciada. O movimento de passageiros no país cresceu em ritmo acelerado nos últimos três anos – 19% só em 2005. O investimento oficial em equipamentos e formação de equipes, contudo, seguiu o caminho inverso. Foi reduzido quase à metade. Assim no céu como na terra. Da mesma forma que deixou de investir em rodovias, ferrovias e portos, perpetuando as deficiências de infra-estrutura no país e criando um novo gargalo para o crescimento da economia, o governo Lula deixou o tráfego aéreo entregue à própria sorte.
Há problemas de toda ordem na complexa seqüência de ações que cada vôo envolve, mas é possível abrigá-los sob os cinco grandes nós que emperram e tornam inseguro o tráfego aéreo no Brasil. A correta identificação desses nós é o primeiro passo para que eles possam ser desatados.
Patricia Santos/AE |
Aviões estacionados nas pontes de embarque do Aeroporto de Congonhas: o Ministério Público investiga por que as pontes custaram três vezes mais que o valor de mercado |
• As comunicações por rádio falham – O Brasil tem mais de cinqüenta freqüências de rádio para a comunicação entre os centros de controle em terra e os aviões. No Cindacta 1, em Brasília, que cobre o Sudeste, nenhuma das freqüências funciona com 100% de clareza 100% do tempo. O trecho entre Brasília e Manaus tem as chamadas "áreas de silêncio", em que as comunicações de rádio (voz) ficam inoperantes por até quinze minutos. Ou seja, os pilotos e os controladores de vôo não conseguem se comunicar.
• Os radares têm zonas cegas – O Brasil gastou 1,4 bilhão de dólares no Sistema de Vigilância da Amazônia, o Sivam, mas ainda há zonas na região amazônica em que os radares não conseguem detectar os aviões no céu. O acidente com o Boeing da Gol ocorreu numa dessas zonas cegas. Boa parte dos radares que cobrem as demais regiões tem mais de vinte anos de uso e não recebe manutenção adequada. Outros se encontram sucateados, à espera de reparos que podem demorar vários meses.
• Os aeroportos são deficientes – Segundo especialistas, a avaliação de um aeroporto é feita com base em três itens: pista, pátio de estacionamento de aeronaves e terminal de passageiros. Nove dos vinte maiores aeroportos brasileiros, que concentram 90% dos vôos no país, têm problemas graves em um ou mais desses quesitos. No Aeroporto de Congonhas, em São Paulo, mesmo com as reformas feitas recentemente, não é raro ocorrerem derrapagens de aviões na pista e falta lugar para acomodar todos os passageiros nos horários de pico.
• Faltam controladores aéreos – Há 2.700 controladores, mas seriam necessários mais 800 para que o monitoramento dos aviões no céu fosse feito de forma segura. A conseqüência disso é que esses profissionais ficam sobrecarregados e controlam mais aviões do que o regulamento prevê. Diante das evidências de que o controle aéreo teve uma parcela de culpa no acidente com o Boeing e o Legacy, os controladores do centro de Brasília, o Cindacta 1, aproveitaram para iniciar uma greve branca e chamar atenção para os problemas. O movimento foi o estopim do apagão aéreo.
• Os recursos do setor são mal gerenciados – Dinheiro não falta para equipar melhor o tráfego aéreo, já que ele não depende de recursos orçamentários. As taxas de embarque pagas pelos passageiros nos aeroportos somam uma dinheirama que, em 2006, chegará a 950 milhões de reais. O Brasil tem a terceira tarifa aeroportuária mais cara do mundo. Só que, por determinação dos ministérios da Fazenda e do Planejamento, a maior parte desse dinheiro fica retida nos fundos aeronáutico e aeroviário, a fim de aumentar o superávit primário nas contas oficiais.
Fabiano Accorsi |
Sala de gerenciamento de crise do tráfego aéreo, no Rio: enfim uma tentativa de coordenação |
Não foi por falta de aviso que o governo brasileiro deixou que tantas deficiências se entranhassem no transporte aéreo do país. Em outubro de 2003, o Conselho de Aviação Civil (Conac), um órgão interministerial que presta assessoria à Presidência da República, criou dezoito resoluções que alertavam o governo para uma série de problemas iminentes. O aumento do tráfego aéreo previsto para os anos seguintes exigia uma ampliação da infra-estrutura em aeroportos e no controle aéreo, sob risco de colapso do sistema. A resolução nº 5 recomendava que se usassem mais recursos do Fundo da Aeronáutica para financiar essas melhorias. Outra resolução, a de nº 11, apontava para a necessidade de criação de um plano aeroviário nacional, um planejamento conjunto entre os diversos segmentos da aviação. A resolução nº 15 alertava para a falta de recursos humanos no controle do tráfego aéreo. O documento diagnosticava que, se o setor crescesse, como de fato ocorreu, iriam faltar profissionais para monitorar os aviões. Todos os alertas e recomendações do Conac foram solenemente desprezados pelo governo.
Lailson Santos |
DO CARIBE PARA O LITORAL PAULISTA A empresária Simone Ciodotario, 47 anos, dona de uma academia em São Paulo, ia para a Costa Rica no fim do ano, mas desistiu da viagem devido à confusão nos aeroportos. Agora,vai passar o período de festas na Riviera de São Lourenço, no litoral paulista. "Mesmo que haja trânsito na estrada, pelo menos sou eu que decido a hora de viajar e tenho certeza de que vou chegar ao meu destino", diz ela |
As deficiências do tráfego aéreo brasileiro se tornaram públicas com o desastre do Boeing da Gol e com o apagão provocado pela operação tartaruga dos controladores de vôo. Seus efeitos mais perversos, no entanto, são menos visíveis a olho nu – eles se abatem diretamente sobre a economia do país. Foi-se o tempo em que voar era coisa para uma minoria rica. Hoje, o transporte aéreo é fundamental para movimentar os negócios no Brasil. Num país de dimensões continentais, onde apenas 20% das estradas – basicamente aqueles administradas pela iniciativa privada – oferecem condições plenas para o transporte de passageiros e de cargas, o avião é um dos motores da economia. Dos 45 milhões de passageiros transportados anualmente pelas companhias aéreas do país, 70% viajam a negócios. "Atrasos e cancelamentos de vôos não prejudicam apenas executivos graduados. Eles emperram também o crescimento de pequenos empreendimentos e o trabalho de profissionais liberais, que dependem de viagens para sustentar seus negócios", afirma André Castellini, da Bain & Company, consultor que atua no setor de aviação civil. De acordo com um levantamento feito pela Bain & Company sobre o perfil do passageiro brasileiro, concluído há duas semanas, 79% das pessoas que viajam a negócios no Brasil são funcionários de empresas privadas, profissionais autônomos ou funcionários públicos.
Roberto Setton |
VOLTOU DE CARRO No começo da semana passada, o construtor Hélio Vasconcelos Netto, 27 anos, foi de avião a Florianópolis, mas alugou um carro para voltar a São Paulo. "Como a maioria dos vôos já estava lotada, fiquei com medo de enfrentar atrasos", diz ele, que no início do mês ficou nove horas no aeroporto de Campo Grande esperando para embarcar. "Eu viajo de avião porque não tenho escolha, mas minha família só vai voar novamente quando todo esse problema acabar", afirma |
Assim como cresce o número de passageiros, o setor de carga também depende cada vez mais do transporte aéreo. As mercadorias hoje transportadas por aviões incluem produtos de alto valor, sujeitos a roubos caso seguissem em caminhões, ou perecíveis. Entre esses produtos estão todos os celulares, relógios, CDs e DVDs produzidos na Zona Franca de Manaus. Praticamente todos os peixes e boa parte das frutas consumidas no Sul e no Sudeste vêm do Nordeste, de avião. A maioria dos produtos manufaturados de exportação sai do país pelo transporte aéreo porque possui prazos curtos de entrega. Isso sem falar em cargas especiais como bolsas de sangue e órgãos para transplante. "Indiretamente, os problemas na aviação afetam a produtividade da economia como um todo", afirma o economista José Roberto Mendonça de Barros, consultor da MB Associados.
Para desatar os nós do tráfego aéreo no Brasil é preciso, em primeiro lugar, que o governo admita que a questão é mais grave do que fazem supor as poucas manifestações da Aeronáutica sobre o assunto e as divagações do ministro da Defesa, Waldir Pires. Um bom começo seria a criação de um plano aeroviário nacional que estabelecesse uma política clara de reformulação e reorganização da infra-estrutura aeroportuária. Nos últimos quatro anos, o governo optou por investir em obras vistosas – principalmente aos olhos dos eleitores. Gastou-se mais de 1 bilhão de reais na construção e modernização de aeroportos, sem que exista um documento de base para priorizar os investimentos nessa área. Em nada ajuda a estratégia do governo nessa área o escândalo da reforma do Aeroporto de Congonhas, em São Paulo. A obra está sob investigação do Ministério Público pela suspeita de um superfaturamento que pode chegar a 252%. Cada um dos corredores móveis de embarque, os chamados fingers, custou aos cofres públicos 2,2 milhões de reais, quando o preço de mercado é de 630.000 reais.
Lailson Santos |
PREJUÍZO NOS NEGÓCIOS Para não ficar refém do caos nos aeroportos, o paulista Marco Cinque, diretor comercial de um frigorífico em São Paulo, desmarcou no início do mês uma viagem de negócios para Belo Horizonte. "Deixei de fazer pelo menos cinco reuniões que poderiam me render novos clientes", reclama |
Evidentemente, é preciso que o país tenha bons aeroportos, mas, para que os vôos que deles partem sejam seguros, é imprescindível investir também no setor do tráfego aéreo que o público não enxerga – como os centros de controle de vôo. Em meio ao apagão aéreo, o governo anunciou a convocação, em caráter de emergência, de quarenta controladores aposentados. A medida pode atenuar o problema, mas, para resolvê-lo, é preciso formar e manter mais controladores do que exige a demanda no dia-a-dia dos aeroportos. A profissão de controlador, assim como a de piloto de jatos, é altamente estressante. Nos dois casos, tem-se na mão uma centena de vidas a cada vôo. As companhias aéreas mantêm uma espécie de "reserva técnica" de pilotos, que podem não estar a serviço em determinado dia, mas entram em ação sempre que os colegas se vêem impedidos de trabalhar por problemas emocionais. Já os Cindactas mantêm em seus quadros apenas o número de controladores necessários para monitorar os vôos. Resultado: quando um controlador precisa se ausentar, os outros ficam sobrecarregados, aumentando os riscos das aeronaves no espaço aéreo. "O problema fica ainda mais grave quando se sabe que pelo Cindacta 1 passam 75% do tráfego aéreo da América do Sul", comenta Marco Antonio Bologna, presidente da TAM e do Sindicato Nacional das Empresas Aeroviárias. Ainda que o governo tome providências imediatas para resolver o déficit de controladores, o problema vai persistir por um bom tempo – a formação desses profissionais leva três anos.
As companhias aéreas calculam que, para resolver os problemas de má comunicação por rádio entre o controle aéreo e as aeronaves, e também a questão das zonas cegas dos radares, seria preciso um investimento de 50 milhões de dólares. Uma ninharia diante da verba retida no Fundo Aeronáutico. Com esse investimento seria possível consertar os equipamentos existentes e mantê-los em funcionamento por um bom tempo. Desde já, porém, é preciso planejar alterações que tornem os sistemas de rádio e de radar mais adequados ao tráfego aéreo brasileiro. Segundo disse a VEJA Marc Baumgartner, presidente da International Federation of Air Traffic Controllers'Associations, entidade que reúne controladores de vôo de todo o mundo, no caso das comunicações por voz, uma solução que tem funcionado bem em países de grande extensão é o rádio via satélite. O sistema acaba com as interferências e evita a necessidade de instalar antenas em locais de difícil acesso e manutenção custosa, como as florestas.
Estudos mostram que o tráfego aéreo no Brasil vai continuar a crescer em ritmo acelerado. Pelos cálculos da consultoria Bain & Company, o número de passageiros no país vai triplicar em vinte anos. A pesquisa conclui que sem investimento em infra-estrutura o caos tomaria conta dos aeroportos em caráter permanente. A Associação Brasileira de Aviação Geral (Abag), que reúne especialistas no setor, projeta que em oito anos o fluxo anual de passageios nos aeroportos de Cumbica e Congonhas, ambos em São Paulo, vai pular de 32 milhões para 49 milhões. A saída para absorver esse contingente, segundo os especialistas, é construir um novo aeroporto, ou reformar o Aeroporto de Viracopos, que fica a 100 quilômetros de São Paulo. Mas, nesse caso, para compensar a distância, seria preciso um outro investimento de monta em infra-estrutura: a construção de um trem expresso ligando a cidade ao aeroporto. Não falta quem pense soluções para os problemas que emperram o tráfego aéreo no Brasil. Só falta o governo fazer sua parte e sair da imobilidade que levou à crise.
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Com reportagem de Camila Pereira, Duda Teixeira,
Érica Chaves, Gabriela Carelli e Renato Piccinin