Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 25, 2006

Líbano Assassinato de ministro empurra o país para crise

O Líbano chora, outra vez

Mais um assassinato político horroriza
o país, onde levantar o espectro de uma
nova guerra civil está deixando de ser tabu


Vilma Gryzinski


Fotos Ben Curtis/AP
tis/AP
A reação do jovem casal ao receber, no hospital, a notícia da morte de Pierre; a mãe, o pai e ex-presidente Amin Gemayel e a viúva, no velório: pesadelo recorrente

Já aconteceu tantas vezes que parece um sonho ruim no qual o Líbano vai afundando cada vez mais, sufocado pela raiva, pela impotência e pela terrível sensação de que coisas piores ainda virão. Uma personalidade importante das hostes anti-Síria é assassinada, todos os que se alinham no mesmo movimento se revoltam, jorram lágrimas amargas, há cenas dramáticas no enterro, promete-se que o crime não ficará impune. O governo sírio é acusado de estar por trás de tudo e nega, sempre com a mesma pergunta retórica – "O que temos a ganhar com isso?". Apenas dois fatores distinguiram o assassinato, na terça-feira passada, de Pierre Gemayel, o jovem ministro da Indústria, cargo de importância menor diante da verdadeira origem de seu poder político, a condição de herdeiro de uma das mais poderosas dinastias cristãs do Líbano. O primeiro foi de método: em lugar do habitual carro-bomba ou do atentado suicida, Pierre – advogado de 34 anos, chamado pelo primeiro nome para ser diferenciado do resto dos figurões da família – foi morto a tiros, de dia, numa rua movimentada, em seu carro. Houve um acidente simulado, três pistoleiros saltaram e, munidos de silenciadores, acertaram seis tiros na cabeça de Pierre, que dirigia sem blindagem nem seguranças, embora ter liderança política anti-Síria no Líbano tenha se transformado numa atividade de altíssimo risco.

A segunda e muito mais importante diferença em relação à onda de assassinatos que vitimou cinco políticos e jornalistas desde o começo do ano passado é o pano de fundo geral, do Líbano e do Oriente Médio. Tudo piorou muito desde o primeiro e mais chocante crime, a morte de Rafik Hariri, bilionário que comandou a reconstrução pós-guerra civil do país e chefiou o governo até bater de frente com o regime da Síria. Hariri foi explodido em fevereiro de 2005, com toda a sua formidável comitiva de guarda-costas, em pleno centro de Beirute – como se vê, nada é garantido no Líbano. Embora hediondo, o assassinato do ex-primeiro-ministro trouxe conseqüências positivas. A maioria dos cristãos, dos muçulmanos sunitas e dos drusos que não suportavam mais ver o Líbano como protetorado sírio se uniu e desencadeou uma onda permanente de protestos. Esse movimento interno, somado à pressão internacional, num caso raro em que o atual governo americano fez alguma coisa direito, produziu o que parecia impossível: a retirada das tropas sírias que estavam no país desde a última guerra civil (1975-1990). Em seguida, houve uma eleição tão democrática quanto possível no Líbano, um país dividido por uma miríade de grupos religiosos e clãs políticos em permanente estado de tensão.


Com o retrato de Pierre Gemayel, cristãos mostram sua revolta: em menos de dois anos, cinco mortes políticas

O Exército sírio foi embora, mas deixou no Líbano uma herança triplamente maldita: seus aliados locais, que incluem os cristãos pró-Síria, uma anomalia representada por políticos como o presidente Emile Lahoud; seus homens de confiança nos serviços secretos locais (os quais, mesmo afastados, continuaram "operando"); e, acima de tudo, o Hezbollah. Reside aí a maior e, por qualquer ângulo que se analise, insolúvel encrenca libanesa. O Partido de Deus, como diz seu nome em árabe, é uma criação ideológica do Irã dos aiatolás, com o apoio logístico da Síria, que remonta aos primórdios da guerra civil libanesa e atualmente está no apogeu. Começou intimidando (ou pagando) as mulheres da comunidade xiita a aderir à ortodoxia à la iraniana, enrolando-as em panos pretos da cabeça aos pés. Hoje, tem total controle sobre os xiitas libaneses, cerca de 40% da população do país, via a hábil exploração da fé religiosa, do fanatismo sectário, do ódio a Israel e do dinheiro que o petróleo iraniano faz jorrar em seus cofres. É um misto de partido político-religioso e exército a serviço de uma seita, dispondo tanto da legitimidade dos votos quanto da força das armas – as quais deveriam ser entregues, em nome da normalização do país, o que não tem a mais remota probabilidade de acontecer.

Com tanto poder, o Hezbollah conseguiu ficar mais forte ainda com uma jogada que, na teoria, deveria enfraquecê-lo, mas, como a lógica no Oriente Médio é peculiar, acabou fortalecendo-o ainda mais: a miniguerra de julho. Desencadeado quando combatentes do Hezbollah entraram em território fronteiriço israelense, mataram três soldados e seqüestraram outros dois, esse breve mas brutal confronto introduziu um novo elemento na região. Em lugar da sova habitual, que se tornou norma nos conflitos com os vizinhos árabes, Israel saiu do Líbano numa posição dúbia. Apesar dos brutais bombardeios que deixaram mais de 1.000 mortos entre a população civil, quem ficou com a percepção da vitória – tão ou mais importante que a vitória em si – foi o Hezbollah. As conseqüências, infelizmente, têm se mostrado péssimas para o Líbano. Em vez de ser integrado ao processo político, opção que, numa hipótese muito otimista, ainda parecia possível antes da guerra de julho, o Hezbollah passou a se mover em sentido contrário, chantageando o governo onde a maioria anti-Síria é cada vez mais precária.

Karamallah Daher/Reuters

Sunitas pisoteiam cartazes do presidente da Síria: suspeito, como sempre

O fortalecimento do Hezbollah é um golpe terrível para a população cristã, já abalada depois que seu líder mais importante, o general Michel Aoun, comandante da última fase da guerra civil, contra os sírios e os xiitas, voltou do exílio e imediatamente se aliou com o mesmo Hezbollah que tanto havia combatido – as alianças políticas no Líbano são como um caleidoscópio constantemente reembaralhado por um sardônico deus tribal, que se diverte com as combinações mais absurdas. No plano internacional, as forças anti-Síria também vivem um refluxo. Com o retumbante desastre americano no Iraque e o novo reequilíbrio de forças políticas nos Estados Unidos, a tendência é buscar um acordão regional que evite a derrocada total. Entra no pacote um entendimento com a Síria – e os cristãos temem, mais uma vez, ser a moeda de troca em nome da estabilização.

A perspectiva do retorno à influência direta da Síria e de um Hezbollah cada vez mais desabrido, capaz de efetivamente forçar uma tomada do poder, apavora os cristãos. Os que não suportam a idéia de ver os fundamentalistas no comando começam, num novo movimento de fuga, a deixar o país. Os que ficam oscilam entre o medo, a resistência política e, palavra maldita que começa a voltar à tona, o rearmamento. Quando Rafik Hariri foi assassinado, apesar do profundo estado de choque do país, era virtualmente impossível achar uma única voz que aventasse a hipótese de uma nova guerra civil. O país, diziam todos, jamais voltaria à orgia de autodestruição que o consumiu durante quinze anos. É quase impossível resumir o que foi aquela guerra devido à quantidade e à complexidade dos elementos envolvidos, mas vai aqui uma tentativa. Os cristãos maronitas (o Líbano moderno é uma criação francesa para lhes dar um país; as antigas minorias muçulmanas hoje são maioria) detinham a maior parcela do poder político, além de um exército privado, o Partido da Falange, criação do avô de Pierre Gemayel, de quem o jovem ministro assassinado na semana passada herdou o nome e o peso dinástico. A guerra começou como um confronto entre os falangistas e os militantes palestinos da OLP que, expulsos da Jordânia, estavam radicados no Líbano, onde mandavam e desmandavam.

De início, foram os muçulmanos sunitas que ficaram do lado dos palestinos – a maioria dos xiitas, que não tinha nenhuma simpatia pelos refugiados abusados, só entrou na história depois. A guerra se disseminou e acabou envolvendo a Síria (ironicamente chamada como força pacificadora pelos mesmos cristãos que hoje a abominam) e Israel, que invadiu o país, conseguiu expulsar a OLP e se fixou no sul, onde permaneceu numa longa e desgastante ocupação, considerada um dos fatores que mais contribuíram, em outra das tantas ironias libanesas, para fortalecer o nascente Hezbollah. O Exército israelense, comandado pelo então ministro da Defesa Ariel Sharon, controlava Beirute quando, num dos intervalos de trégua, Bashir Gemayel, filho do velho Pierre, foi eleito presidente. Àquela altura, a Síria já se alinhava com os palestinos contra Israel e os cristãos libaneses. Bashir não chegou a tomar posse: foi explodido por um carro-bomba unanimemente creditado aos sírios. Alucinados com a morte do chefe, milicianos falangistas invadiram dois campos de refugiados palestinos na periferia de Beirute, onde praticamente não havia mais militantes armados, e dizimaram mulheres, crianças e velhos. Como chefe da ocupação militar, Ariel Sharon foi responsabilizado indiretamente pelo massacre de Sabra e Chatila (reabilitado, acabou eleito primeiro-ministro, sofreu um derrame e hoje agoniza, em coma, num hospital israelense). Convocado pelo clã para ocupar o lugar do irmão, embora sem seu carisma nem sua brutalidade, Amin Gemayel foi eleito presidente do Líbano. A guerra continuou por muitos anos mais. Depois de um mandato que conseguiu cumprir inteiro e vivo, ao preço de se curvar ao poder sírio, Amin Gemayel foi para o exílio. Ao voltar, reassumiu o comando de uma ala importante dos cristãos maronitas, passou a fazer oposição assumida à Síria e convocou o filho mais velho para, como exige a tradição do clã, assumir seu lugar na política. Na semana passada, Amin Gemayel chorava a morte do herdeiro, Pierre. Pediu justiça e disse que o assassinato de seu filho se insere no habitual "procedimento diabólico" da Síria, mas convocou seus comandados, hoje militarmente desmobilizados, a não buscar vingança. Diferentemente do que acontecia pouco mais de um ano atrás, suas palavras moderadas, em meio à dor terrível de perder um filho, não pareciam mais indicar o único caminho a seguir. Falar em uma nova guerra civil já não é mais tabu no Líbano.

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