Artigo - Gilberto de Mello Kujawski |
O Estado de S. Paulo |
23/11/2006 |
“Intellettuale” é xingamento comum ouvido em Roma contra os “barbeiros” do trânsito, os que dirigem mal e desajeitadamente. “Intellettuale” é o palerma que só serve para atrapalhar os outros motoristas. Qual será a origem desta má fama? Será que o intelectual não sabe dirigir? Ou será que dirige mal suas idéias? Intelectuais não passariam de grandes trapalhões no manejo dos conceitos e das doutrinas, uns terríveis enroladores que só fazem nos enganar e perder tempo. A milenar perspicácia mediterrânea não se deixa iludir e dá nome aos bois. O intelectual, vale dizer, o intelectual de esquerda, encasquetou a idéia de que sua missão na vida é funcionar como a “consciência crítica da sociedade”. Ele conhece o “sentido da História”. Ora, bolas! Eis aí um objetivo ambicioso, de alcance ilimitado e forte acento messiânico, que empresta ao intelectual a aura de reformador do mundo. Já começa erigindo-se em dono inconteste da verdade. O intelectual não vai ao encontro da sociedade para entendê-la, de espírito aberto, para aprender, e sim para decretar, para mandar, e impor dogmaticamente suas categorias a um sistema injusto e desumano, no qual nada se salva. Um sistema que só pode ser transformado pela arquifamosa reforma das estruturas. A origem desse “criticismo” radical inoculado nas cabeças “progressistas” está naquela novidade introduzida no pensamento por um certo senhor de nome Immanuel Kant, prussiano de Koenigsberg, que ensinava: “Em vez de reger-se o entendimento pelo objeto, é o objeto que será regido pelo entendimento.” O conhecimento já não gravita ao redor do objeto; é o objeto, o mundo, que gravita em torno do sujeito, das idéias. Foi esta a chamada “revolução copernicana” introduzida por um dos maiores filósofos de todos os tempos. A repercussão teórica e prática deste princípio foi imensa. Virou o mundo pelo avesso e inaugurou a mentalidade revolucionária. Kant está na origem da Revolução Francesa e de todas as revoluções. À luz daquela descoberta do mestre alemão, a sociedade só será erigida sobre fundamentos legítimos quando for totalmente organizada pela razão, pela razão pura (excluídos a experiência e os legados anteriores, por mais valiosos que sejam). O que veio do passado está tudo errado, é falso e deve ser destruído. Em seu lugar serão edificados o novo homem e a nova sociedade, totalmente racional, planificada e dirigida pelo Estado em todos os detalhes. O Estado, sábio, justo, provedor, substituirá o velho Deus das religiões. A utopia socialista promete uma sociedade perfeita, sem fome, injustiça, desigualdade ou violência, o paraíso sobre a face da Terra. Muitas gerações serão sacrificadas em nome da revolução, muito sangue vai correr, o Estado totalitário pesará sobre os ombros de milhões de pessoas por tempo indeterminado, mas, afinal, a nobreza dos fins justifica a torpeza dos meios. Daí para a frente o intelectual passou a fechar a cara para a sociedade, vista como um edifício abominável de erros e mentiras no qual nada se salva. Difundiu-se a convicção de que ser inteligente é ser “crítico” implacável desse estado de coisas. Cabeças podem rolar à vontade, os direitos do cidadão podem ser esmagados, os tesouros da cultura podem ser pulverizados, as formas tradicionais de convivência podem ser aniquiladas. Aí reside o erro clamoroso dessa mentalidade criticista que só vê erro e mentira por toda parte e, em nome da sociedade utópica do futuro, condena à morte tudo o que foi criado pelo homem em milênios de História. Não se joga fora a criança com a água do banho. Quanta coisa, quantos valores universais, quantas instituições superiores foram criadas no correr do tempo, inclusive pelo concurso de todas as classes sociais indistintamente, como a língua, por exemplo, e seu desdobramento, a literatura, sempre ligada às fontes populares. A chamada “consciência crítica da sociedade” constitui formulação deformada, presunçosa e ridícula da missão do intelectual. Este pode e deve criticar tudo o que achar errado. Mas a função essencial da inteligência não é criticar, e sim entender as coisas sem preconceitos nem discriminações. Basta apresentá-las como elas são, ou parecem ser, para acusar suas qualidades e seus defeitos. A verdadeira missão do intelectual é tirar a venda dos olhos das pessoas para que elas possam enxergar tudo o que se passa, com máxima clareza e nitidez, sem intolerância nem mistificação. “Consciência crítica”? Não, o intelectual é a consciência da sociedade, ponto final. Não seu inquisidor implacável. A postura crítica sistemática e irredutível já pressupõe um preconceito ideológico, consagra um critério maniqueísta inaceitável. Uma coisa é acusar na sociedade isto e aquilo que há de condenável, outra é praticar a crítica como uma magistratura solene, usando a inteligência como flagelo universal contra um mundo que seria a encarnação de todos os males. Neste sentido, o modelo do intelectual entre nós foi, por exemplo, Nelson Rodrigues. Ninguém nega que Nelson foi um crítico acerbo de muitos aspectos da sociedade (que ele atacava principalmente do lado ridículo), mas, antes de criticar o que havia de errado, ele amava viver em sociedade, andava a braços com homens e mulheres do povo e de todas as classes, mergulhado a fundo em seus usos e costumes. Outro exemplo foi Gilberto Freyre. Enquanto outros sociólogos faziam cara feia para a realidade brasileira, ele soube amar como ninguém as coisas para entendê-las. Por último, Sérgio Buarque de Holanda, acadêmico notável e incorrigível boêmio. No trânsito das idéias, o maior perigo para o intelectual é cair no ridículo, travestir-se em reformador do mundo, trocando a realidade pela ideologia. Intelectual, sim, intellettuale, não. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quinta-feira, novembro 23, 2006
‘Consciência crítica da sociedade’
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