Entrevista:O Estado inteligente

quarta-feira, novembro 22, 2006

DANIEL PIZA

Finos biscoitos
fonte: O Estado de São Paulo 19 de novembro de 2006
Beethoven Piano Sonatas, de Nelson Freire (Decca) – O recital de quinta-feira retrasada no Auditório Ibirapuera foi prejudicado pela acústica e pelo piano, mas o novo CD de Nelson Freire é indispensável. Minha impressão é que ele se sai melhor em compositores como Chopin, Schumann e Brahms, mas em alguns movimentos das sonatas de Beethoven nos leva ao plano desejado. É o caso do rondó da Waldstein, um rendilhado de agudos com frescor e vigor, e do adágio da Luar, em que a delicadeza jamais cede à pieguice. Na opus 110, executada no auditório e presente no CD, sinto falta da contenção, da concisão cerebral de pianistas como Sviatoslav Richter ou Alfred Brendel.

Pirata e Mar de Sophia, de Maria Bethânia (Biscoito Fino) - Antes de mais nada, é preciso elogiar a ousadia rara de uma cantora consagrada que, no crepúsculo da carreira, se renova de tal forma, como Bethânia depois do CD Brasileirinho. Os dois CDs em lançamento agora pela Biscoito Fino, uma gravadora que justifica seu nome, são projetos gêmeos, que fundem canções de grandes autores (Dorival Caymmi, Tom Jobim, Edu Lobo, Caetano Veloso), poemas ou frases (Guimarães Rosa, João Cabral, Sophia de Mello Breyner) e cantigas populares. Sempre me incomodei com algumas abordagens cafonas de Bethânia, e um pouco disso se vê ainda na maneira antiquada como declama os versos, exagerando nas ênfases e pausas. Mas ela está no auge, principalmente no CD Pirata, com arranjos que combinam com seus dons de dicção, acompanhada de grandes instrumentistas como Naná Vasconcelos, Jaime Além e Jorge Helder. Destaque: Eu Que não Sei quase Nada do Mar, de Ana Carolina e Jorge Vercilo.

Metheny Mehldau, de Pat Metheny e Brad Mehldau (Nonesuch) - A esperada união do guitarrista com o pianista resultou num CD interessante, um jazz que bebe na canção – inclusive na bossa nova – e ao mesmo tempo desfaz as melodias em células quase percussivas, como fragmentos improvisados. Nem todas as faixas atraem pela melodia, parecendo secas demais, mas em outras, como em Make Peace e sobretudo Ring of Life, a vida realmente circula. Sintomaticamente, esta é uma das duas únicas que contam com os outros dois membros – Larry Grenadier e Jeff Ballard – do trio de Mehldau. A sensação é a de que podem ir além.

Braggtown, do Branford Marsalis Quartet (Universal) - Jazz mais dinâmico e melódico pode ser encontrado neste CD de um quarteto também promissor. Hope é uma das músicas mais “cool” dos últimos tempos; Clifford Brown faria questão de gravá-la se estivesse vivo.

Delicatessen, do quarteto Delicatessen (Bebel Arte) - A cantora Ana Krüger, o violonista Carlos Badia, o baixista Edu Martins e o baterista Mano Gomes se juntaram sob iniciativa do produtor Beto Callage para trabalhar no meio-termo entre jazz e bossa – às vezes “meio-termo” demais. A voz de Ana Krüger, com timbre que lembra Anita O’Day, é muito bonita. Trabalhar com “standards” é difícil pelas comparações, mas em alguns casos, como I Fall in Love too Easily, eles captam a tristeza da canção sem perder a bossa do violão.

The Information, de Beck (Interscope) - Mutante como um David Bowie do século 21, Beck já passou por todos os gêneros, sempre com competência e boas letras. No novo CD, avança no hip hop, dá uma de Radiohead nos efeitos de computador, mas é em canções suingadas como Think I’m in Love que fala com todos os tipos de ouvinte. O disco todo é perfeito para dançar, mas, ao contrário do habitual, não abdica da elaboração verbal e sonora.

CADERNOS DO CINEMA

Por coincidência, dois filmes antípodas, Volver, de Almodóvar, e Os Infiltrados, de Scorsese, estrearam juntos no circuito comercial brasileiro. O espanhol se passa num mundo feminino, em que os homens aparecem, quando aparecem, de forma deplorável ou secundária, e a câmera parece envolver cada personagem; o americano é o inverso, com uma edição feita a lâmina, e soma tantos tiros quanto o primeiro soma beijos. Ambos foram saudados como a volta desses cineastas à sua melhor forma por serem voltas a seus temas por excelência. Não. São boas sínteses, mas ficam abaixo de seus melhores filmes.

A abertura de Volver talvez seja seu melhor momento: um “travelling” da direita para a esquerda à altura das campas do cemitério onde as viúvas inutilmente limpam a poeira; enquanto isso, sopra o vento que, naquela cidadezinha, se acredita trazer perturbações mentais. A presença dos mortos na nossa vida é de novo o assunto maior; como num cruzamento de Hitchcock com Fellini, embora sem a densidade deles, a história é sobre uma mãe (Carmen Maura) que reaparece e pode ser um espírito ou não. Eis ainda o abuso infantil, o humor negro, a sensualidade constante, o número musical – o repertório conhecido de Almodóvar. Ora a câmera se comporta como num melodrama de TV, ora é ousada e distribui closes nos peitos de Penélope Cruz ou no pudim que ela prepara. Logo adivinhamos o desfecho e há muitas seqüências que se estendem sem necessidade, mas, sem ser Tudo sobre Minha Mãe, é um passeio pela percepção feminina para as camadas dos sentimentos.

Os Infiltrados é um filme amarrado num cabo de tensão: toda cena é um show, e o espectador fica imantado à poltrona. É também esse o problema do filme: a sucessão de impactos é tal que não há relaxamento, não há silêncio, e a gente sai sem memória de quase nenhuma cena em especial. Algumas situações são inverossímeis, principalmente as que envolvem o uso de celular, e alguns personagens não convencem, como a psiquiatra acostumada a lidar com criminosos que é insegura demais. A trama é muito boa – um jogo de espelhos entre policiais e mafiosos por meio de agentes infiltrados (Matt Damon e Leonardo DiCaprio) no lado oposto – e a condução eletrizante; mas o efeito passa com a mesma rapidez. Scorsese também comete alguns barroquismos, como a redundância do fundo vermelho para um Jack Nicholson endemoniado (ele faz mais uma vez esse papel, com alguns detalhes novos e exagerados) ou o ratinho na janela na cena final. O resultado não é, como em Taxi Driver e Os Bons Companheiros, um exame agudo de como a violência pode dominar o código masculino.

Os homens podem aprender mais com as mulheres de Volver do que as mulheres com os homens de Os Infiltrados.

O MUNDO É UM PALCO

É eficiente a montagem de Pequenos Crimes Conjugais, texto do dramaturgo francês Eric Emmanuel Schmitt traduzido por Paulo Autran (que atuou em seu Variações Enigmáticas), direção de Márcio Aurélio e belo cenário de Isay Weinfeld, no Teatro Jaraguá. A peça mal tem uma trama, mas o diálogo trata de um tema universal com fluência e algumas sacadas. Petrônio Gontijo se sai bem, com segurança, e Maria Fernanda Cândido quase sempre, mas não acreditamos nem por um segundo que ela tenha experiência de alcoolismo.

A ARTE DE EXPOR

Aproveitei uma ida ao Rio e vi a mostra Aleijadinho e Seu Tempo no Centro Cultural Banco do Brasil, que chega a São Paulo em julho do ano que vem. É muito bonita e informativa. Além das esculturas e oratórios, a curadoria de Fábio Magalhães reuniu mapas, moedas, painéis, quadros de Rugendas e Debret, um filme sobre as igrejas mineiras e uma maquete da São Francisco de Assis. Fica clara, pela precisão dramática, a superioridade dos trabalhos mais autorais de Aleijadinho em face de seus contemporâneos, mas há também peças muito bonitas de mestres como Francisco Xavier de Brito. Acho equivocada a tese estabelecida de que Aleijadinho “inaugurou” a arte brasileira por seu sincretismo, já que trabalhava dentro da matriz do barroco português; no entanto, é fato que sua genialidade vem da maneira como chegou a inovações por meio de materiais incomuns como a madeira policromada e a pedra-sabão – e, no caso da igreja, por sua fachada em curva. O período, com seu misto de fervor religioso e furor econômico e sua superposição da herança barroca com o classicismo árcade, é fascinante; Aleijadinho, sua expressão e exceção maior.

POR QUE NÃO ME UFANO

Quem dizia que no governo Lula a economia estava “blindada” da política – quando na verdade era apenas o mercado financeiro que o aprovava – precisa começar a explicar por que o PIB neste ano não deve crescer mais que 3%. Quando os esforços de um governo estão voltados para apenas conter a dívida interna e investir em ajuda social, sem se preocupar em desamarrar a produção e melhorar o ensino, é porque a imediatez política está ditando a mediocridade econômica. Não espanta que os estudos demonstrem que a classe média, cada dia mais endividada, está perdendo poder aquisitivo, o que leva à estagnação do mercado interno, e que a evolução no índice de IDH dos governos FHC e Lula seja tão ou mais lenta que nas décadas anteriores. De grão em grão a galinha perde o páreo.

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