Artigo - |
O Globo |
29/11/2006 |
Ao fazer um discurso de vencedor, na primeira reunião do PT para o público externo, no sábado, dia 25, o presidente Lula disse aos companheiros que era preciso desfazer o "nó de marinheiro" que tinham dado no desenvolvimento do Brasil. Discursos de presidente são sempre informativos, mas, deste presidente, são reveladores. Reveladores porque quase sempre ultrapassam a notificação trivial, a má notícia recorrente e a desculpa esfarrapada, e mostram o fio desencapado dos subtextos que levam diretamente ao inconsciente. Aos fantasmas presos na alma ou alojados no coração. Outro dia, por exemplo, Lula falou que o seu governo havia sido "pego de calça curta" pelos transtornos do setor agrícola. Agora ele apresenta ao seu partido o pacote-purgativo de um governo de coalizão, algo que para os petistas ortodoxos soa certamente como um machadiano "ao vencedor, as batatas!" ou, o que dá no mesmo mas é mais direto, ser "pego com as calças arriadas", algo coerente com a segunda etapa da autocrítica contida no estar vestindo calças curtas, mas que ninguém gosta de ouvir. Coalizão que dói tanto no partido que os ministros mais ciosos do poder já a qualificam de "coalizão programática", uma contradição em termos tão gritante quanto "morto-vivo" ou, com as honrosas e devidas exceções que lamentavelmente confirmam a regra, "honestidade e sinceridade política"... Como um autêntico tucano, Lula ficou naquele fio de navalha que separa a admoestação do pôr o PT no seu devido lugar, depois da "encalacrada que nós saímos"; do tal "governo de coalizão" que, para um partido de radicais que não ia errar ou roubar, soa como um incompatível prêmio de consolação. Sobretudo para o PT avesso à flexibilidade obrigatória de um mercado globalizado e formado pelo vezo ideológico ancorado na certeza de uma missão histórica irretocável. E por isso mesmo incompatível com a divisão do poder com anti ou não companheiros, sobretudo os do PMDB como um todo - o partido das raposas velhas e dos notórios indiciados numa ciranda de crimes contra as instituições públicas. Se o discurso tem um lado moderno, dito democrático (nós precisamos ser cobrados, a oposição é formalmente básica etc.), altruísta (vamos governar com todas as correntes de boa-fé etc.), ele tem também o claro ar de purgatório, quando diz com quase todas as letras que é preciso pagar pela ambição do poder a longo prazo, realizando um duro, embora saltitante, exercício de tardia autocrítica. Estou certo de que esse discurso ficará como um texto decisivo na história do PT e, por extensão, da vida política brasileira. Digo isso porque ele exprime vivamente o "nó de marinheiro" que vivemos quando consolidamos com eleições impecáveis um conjunto de cargos executivos chaves, inclusive o mais decisivo de todos - o de presidente da República -, mas, paralelamente, reacendemos a chama do poder pessoal como o ponto decisivo da dinâmica política nacional. Ou seja, quando um Lula triunfante pode repreender e dizer com todas as letras aos seus companheiros de PT que ele é mesmo maior do que o PT e que o povo perdoou o partido por sua causa, motivado pela sua história de vida e pelo seu carisma, desfazem-se todos os sonhos utópicos de ter no Brasil partidos ideológicos, porque imunes de personalismos, populismos ou lulismos ligados à máscara dos seus líderes. "Nem tanto ao mar nem tanto à terra", diria um velho marinheiro conhecedor dos nós que têm amarrado o Brasil. Depois de décadas lutando arregimentadamente contra a ditadura militar que governava com pessoas, mas institucionalmente, chegamos ao nó de marinheiro. Ao ponto no qual temos que redesenhar os partidos políticos, tirando deles as certezas das ingenuidades ideológicas para que possam atuar melhor junto não apenas do "povo", mas de "eleitores" que são tão vítimas da desordem social causada pela falta de coragem de nada decidir ou mudar quanto os "pobres" o são da fome e da miséria. Para tanto, é preciso reavaliar o peso das pessoas dentro de partidos e - sejamos acacianos - dos partidos com seus programas e valores, dentro das pessoas. Neste sentido, o "nó de marinheiro" que teriam dado no Brasil é uma metáfora reveladora do trabalho que temos pela frente. No governo, o de experimentar dividir autenticamente o poder. Ou seja: administrar os bens públicos sem cair no ideologismo exclusivista e paralisante ou sucumbir ao discurso oportunista dos oprimidos de ocasião. Na oposição, trata-se de aprender a distinguir estratégia eleitoral legítima e fiscalização daquilo que é de interesse do Brasil, da doença juvenil da adesão para sobreviver com lucros. E para governo e oposição resta a imensa, a real e urgente tarefa de exercer o poder sem cair no pragmatismo oportunista e amoral. Pois ao contrário dos que pensam que entendem de política em regimes democráticos, o chamado "poder" está tanto no governo quanto na oposição que, no liberalismo, conta tanto quanto o comando ao qual ela, divergindo com convicção e transparência, legitima e consagra. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, novembro 29, 2006
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