Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 11, 2006

A periferia ganha o vídeo

A periferia virou centro

A ficção brasileira elegeu a pobreza
urbana como seu grande tema. Esse
é o combustível para uma nova
idealização: a da favela pop


Isabela Boscov


Fotos divulgação
Quelynah, Negra Li, Leilah e Cindy, as protagonistas de Antônia: só feijão não mata a fome

Em 2002, sob tiros da intelligentsia (no sentido stalinista da palavra) por causa da suposta "cosmetização da fome" em Cidade de Deus, o cineasta Fernando Meirelles rebateu assim as críticas: "As pessoas acham que para falar de favela tem de ser triste e solene. Mas suba o morro para ver se ele não é pop, se não há humor". Como diretor de Cidade de Deus e, depois, como produtor da minissérie Cidade dos Homens, que teve quatro temporadas com ótima audiência na Rede Globo, Meirelles forneceu evidências mais do que suficientes para provar sua tese e demolir o mito do barracão de zinco infeliz, que pedia socorro à cidade a seus pés – como no samba célebre. Cidade de Deus, o filme, não foi o primeiro a abordar por esse viés ao mesmo tempo pop e ultra-realista o tema da vida no lado de lá dos trilhos. Do livro homônimo de Paulo Lins que lhe serviu de base ao romance Inferno, de Patrícia Melo, da música do grupo O Rappa à dos Racionais MC's, esse era um território que já vinha sendo desbravado. Mas, nos últimos quatro anos, ele passou por uma transmutação: migrou da margem da criação e da indústria cultural para o seu centro. E, por ironia, vem se tornando objeto de um novo tipo de idealização.

Antônia, minissérie que estréia nesta sexta-feira 17 na Globo, confirma a tendência. Baseada no filme da diretora Tata Amaral (já pronto, mas a ser lançado apenas em fevereiro) e produzida pela mesma O2 da qual Meirelles é sócio, ela acompanha, em cinco episódios, os esforços de quatro moças da Vila Brasilândia, na periferia de São Paulo, para fazer carreira como o grupo musical que dá nome ao programa. Não se trata de uma história em circunstâncias extremas, como a dos garotos Laranjinha e Acerola, em Cidade dos Homens. Interpretadas pelas cantoras e atrizes novatas Negra Li, Leilah Moreno, Quelynah e Cindy Mendes, as personagens estão longe de levar uma vida confortável, mas estão igualmente longe de ser miseráveis. Bem-feita, colorida e com uma produção musical atraente, que vai do rap das meninas ao partido-alto, Antônia pode ser encarada como um trunfo para uma emissora como a Globo – um programa capaz de gerar identificação e satisfação entre a audiência fiel das classes C, D e E, além de segurar o espectador A e B, que costuma fugir para os canais pagos. E aí está um dos traços que definem Antônia e seus similares. Produtos culturais podem ser artísticos, mas também são produtos – e, principalmente quando são feitos para passar na televisão, requerem uma dose de artifício e edulcoração. Isso não é pecado ideológico. Significa apenas que fazer ou assistir a um programa não é o que basta para mudar as relações sociais – uma obviedade que às vezes se julga conveniente esquecer.

A funkeira Tati Quebra-Barraco com Regina Casé, no Fantástico: para seduzir

Apesar do clima "para cima", Antônia, como as outras criações dessa leva, se alicerça sobre um enredo que nunca perde seu interesse: a proximidade da violência. Uma das meninas acabou de sair da prisão, outra tem um ex-marido metido com gente perigosa. No quarto e excelente episódio, que se desenrola no dia seguinte ao dos ataques do PCC na capital paulistana, ela cruza desesperada a cidade para buscar sua filha pequena na delegacia – o pai foi preso enquanto cuidava da menina. Numa prova de que uma situação como essa não tem de degenerar para o lugar-comum, a ênfase recai sobre a habilidade de um dos policiais em desviar a atenção da criança do espetáculo do pai algemado e interrogado.

Não há dúvida de que o competente artesanato dramático, comum a boa parte dessa corrente ficcional, é um dos pontos que seduzem a platéia de classe média – assim como o apelo quase irresistível do sotaque pop (e às vezes populista), evidente em programas como o quadro Central da Periferia, que Regina Casé apresenta no Fantástico, e a curiosidade, natural e salutar, diante do novo. "Acho que, para o espectador que não conhece essa vida, o que chama atenção é a solidariedade que, na periferia, divide espaço com a violência e as drogas. Essa união que não depende de dinheiro é um valor que a classe média perdeu", opina o cantor Netinho de Paula, que produziu a novela Turma do Gueto na Record. Mas pode-se formular uma outra tese também sobre o atual fascínio da "elite branca" com a periferia e a favela. Paralisada a meio caminho entre o medo da violência e a sua própria acomodação, ela aprecia essa nova ficção como se retratasse algo de notável – como se a vitalidade e a efervescência que resistem à pobreza fossem o "lado bom" do apartheid brasileiro, quase a sua vantagem. Da mesma forma que a antiga visão sentimental da favela, essa é uma reação distorcida: celebrar (a uma distância segura, frise-se) a energia que vem do "lado de lá" é o que basta às consciências pesadas. Não se discute que o abismo social é a feição mais marcante do Brasil. E é, sim, desejável que a ficção continue a abordá-lo. O lastimável é que a desigualdade, sobretudo nessa sua encarnação urbana e novidadeira, seja hoje o maior, se não o único, espólio político e patrimônio artístico do país.

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