Novos livros de Rubem Fonseca e Dalton
Trevisan mergulham na alma do cafajeste
Jerônimo Teixeira
Rubem Fonseca e Dalton Trevisan são hoje os escritores mais cafajestes do Brasil. Fique claro que essa constatação não diz respeito à vida pessoal desses autores, da qual pouco se sabe. Ambos com 81 anos, são notórios reclusos, que não falam com a imprensa nem posam para fotografias. A literatura dos dois, porém, merece a qualificação (que aqui tem algo de elogio, pois uma boa dose de ousadia é necessária para merecê-la): cafajeste. O novo livro de Rubem Fonseca, Ela e Outras Mulheres (Companhia das Letras; 170 páginas; 34 reais), é todo dedicado a personagens femininas. Os títulos dos 27 contos são nomes próprios femininos, em ordem alfabética, de Alice a Zezé. Mas o que está em causa não são tanto as mulheres, mas o modo como os homens se posicionam em relação e se impõem a elas. A mais recente coletânea de contos de Dalton Trevisan leva o título emblemático de Macho Não Ganha Flor (Record; 128 páginas; 24,90 reais). No meio dos pequenos meliantes e assassinos que povoam o livro, as mulheres muitas vezes aparecem submetidas ao mais infame exercício da imposição sexual masculina: o estupro.
O cafajestismo nem sempre se traduz em agressão física, mas implica, sim, o desejo perverso de subjugar a amante. É uma espécie de versão plebéia do sadismo. O cafajeste, como o sádico, despoja o sexo de qualquer idealismo ou transcendência, e só o que resta é a carne, pulsante e dolorida. Com sua lógica de dominação e humilhação, o cafajestismo se encaixa bem na obra dos dois autores mais violentos do Brasil. No subúrbio curitibano de Trevisan e no morro carioca de Fonseca, a luta de classes explode junto com a guerra dos sexos. Quando todas as relações sociais são movidas pela violência, o cafajestismo desponta como a afrontosa estratégia do homem feio e pobre para seduzir a mulher bonita e rica (alguns níveis abaixo na escala literária, Chorão, vocalista da banda Charlie Brown Jr., já expressou a mesma idéia em algumas letras). Fonseca ainda guarda uma certa ingenuidade erótica – em contos simpáticos (mas anódinos) como Selma – e até ensaia redimir os bandidos brutais que sempre infestaram sua obra – no conto Teresa, por exemplo, um assassino profissional ajuda uma velhinha em apuros. Trevisan revela-se mais radical. Em Macho Não Ganha Flor, a violência social é um abismo sem fundo. Os criminosos às vezes armam a pose de vítima da pobreza – mas suas próprias vítimas muitas vezes também são pobres.
Ilustração Loredano |
Dalton Trevisan e Rubem Fonseca: assassinos charmosos, dentes de ouro e fetiche por colegiais |
O estupro talvez seja produto de uma ilusão do cafajestismo: a percepção de que a mulher – qualquer mulher, todas as mulheres – está sempre desejosa e pronta para o sexo. O marginal de O Cobrador, conto-título de uma coletânea de Rubem Fonseca publicada em 1979, chega a acreditar que uma vítima sua gosta do estupro. É só a distância social entre a mulher grã-fina e o pobre-diabo desdentado que impede a primeira de desejar ardentemente o segundo. E até a marginalidade pode ter seu charme. No novo livro, o conto Belinha tem como personagem-título uma jovem rica e inconseqüente que acha muito charmoso namorar um assassino profissional. O que impulsiona o cafajeste de qualquer extração social é sua inabalável auto-suficiência, sua certeza de que as mulheres vão adorá-lo mesmo quando desprezadas e espezinhadas. O cafajeste não é um homem bonito, mas faz sucesso com sua feiúra – os personagens de Fonseca e Trevisan desfilam orgulhosamente seus dentes de ouro, cicatrizes e aleijões.
Consagrados como os maiores nomes do conto brasileiro contemporâneo, Fonseca e Trevisan não estão sozinhos. A literatura nacional incorpora uma respeitável tradição de retratos sexuais do desastre social. Quando o protagonista de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, reclama da leitora de "alma sensível" que o chama de cínico, o adjetivo bem que poderia ser substituído por cafajeste. Brás Cubas acaba de descobrir que Eugênia, com quem vinha trocando uns amassos, tem um defeito de nascença: é coxa. "Por que bonita, se coxa? Por que coxa, se bonita?", pergunta-se, com a insensibilidade masculina típica do cafajeste. O Macunaíma de Mário de Andrade é uma versão primitiva de cafajeste. Avança até sobre as mulheres de seus irmãos – como mais tarde faria Palhares, o canalha, personagem das crônicas de Nelson Rodrigues, escritor que criou para si mesmo uma persona rematadamente cafajeste (perguntado por Hebe Camargo se toda mulher gosta de apanhar, respondeu: "Só as normais. As neuróticas reagem"). Carlos Drummond de Andrade, mulherengo mas discreto, era um cafajeste melancólico. Ciclo, um de seus estupendos poemas amorosos, traz observações que, traduzidas em linguagem chã, não seriam estranhas em uma roda de homens sujos em um boteco idem. "Assistimos ao crescimento colegial das meninas... / Nosso desejo, de ainda não desejar, não se sabe desejo, / e espera / Como o bicho espera outro bicho". O fetiche da colegial, a menina cuja inocência erótica tão bem se presta à subjugação cafajeste, reaparece no conto Prova de Redação, de Trevisan.
Contra os cândidos protestos do feminismo, parece que o cafajeste é uma realidade universal. O Brás Cubas de Machado conta com propriedades e escravos para exercer seu cafajestismo com maior conforto, mas os suburbanos de Nelson Rodrigues se mostram ainda mais machistas. Nenhum desses autores está aí para dignificar o cafajeste. Vale aqui a conhecida comparação do romancista francês Stendhal entre a literatura e o espelho: não se deve culpá-los pela feiúra que porventura revelam. Rubem Fonseca e Dalton Trevisan estão entre os escritores brasileiros que expõem realidades inconfessáveis da sexualidade masculina. Alguns leitores se escandalizam. Outros, em silêncio, se deliciam.Livros
15 de novembro de 2006
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Leia trecho do livro Macho Não Ganha Flor, de Dalton Trevisan
Olha que tarde gloriosa de sol. O vento belisca de leve a cortina do quarto. Lá fora uma corruíra canta alegrinha. No teu peito essa outra acorda e já responde.
Minha irmã e a mãe faziam compras. Afinal sozinha, a casa inteira para mim. De roupão, antes de entrar no banho, dava os últimos retoques diante do espelho.
De repente, com susto, senti que não estava só. Um cheiro no ar? Um estalido no soalho? Uma sombra no canto do olho?
Pronto! Aquela mão suada me tapou a boca. E a outra afogava o pescoço.
— Não grite! Nem um pio. Que eu te mato!
Me empurrou contra a parede. Abriu com violência o roupão.
— Oba!
Ai de mim, apenas calcinha e sutiã. Daí ele começou a fazer coisas.
Me beijou o rosto, o pescoço, um seio e outro. Ui, que nojo. Gemendo, se esfregava no meu corpo.
Todo vestido. Só abriu o zíper da calça.
— Faça tudo o que eu mandar. Bem quietinha.
Sem aliviar a mão esquerda no meu pescoço.
— Já matei uma. Não me custa apagar outra!
E arrancou o meu roupão. Tentei correr para a porta. Me sacudiu pelo cabelo e esfregou a cara na parede.
— Quer morrer, sua vadia?
Era o bafo podre da morte. O corpo não parava quieto, tanto que eu tremia. O coração me batia aos saltos no joelho.
Em desespero, chorava e soluçava baixinho. Tão assustada, nem me defendia. Sem força de erguer os braços.
Daí percebi que ele tentava, mas não conseguia. Acho que eu estava muito nervosa e chorando sem parar. Ele beijava e chupava ora um seio, ora outro. Me corria a mão boba pelo corpo.
— Não sabe que deve lutar? Por que não se defende como as outras?
Ele que não sabia: essa carne, com fúria manuseada, já não era a minha. Para não enlouquecer, de tamanho horror, me desligara do próprio corpo. Aquele pobre objeto seminu pertencia a outra.
A minha querida boneca, ela sim a melhor amiga, chorando com olhinho de vidro ao meu lado — e não eu, não eu —, que era desfrutada pelo monstro.
Me xingava de piranha e cadela. Mandava eu calar a boca, assim ele não conseguia.
— Abra o olho. Não pisque. Feche o olho. Que porra. É o mesmo olho azul de minha mãe.
Daí eu pedi e supliquei. Em nome da santa mãezinha dele. Não me fizesse mal.
— Ela está me olhando com a tua cara!
Podia levar tudo de valor na casa. Pelo amor de Deus, me deixasse em paz. Era noiva e ia casar em três meses.
Ao falar que estava noiva ele assanhado começou tudo de novo.
— Aposto que é muito safadinha, né? Não transa com teu noivo? O que você faz com ele? Fala, sua vadia!
Ah, não fala? Que ficasse de joelho. Outra vez, de pé. Sentada. Deitada. De costas. Pernas fechadas. E abertas. Bem abertas.
E nada.
Cada vez mais irritado. E mais gago. A culpada era eu. Que só chorava. E só sabia tremer. Que porra.
— Não aprendeu nada? Não trepa com teu noivo? É boiola, por acaso?
Esse viadão, ele bem podia avisá-lo: eu era imprestável. Mais fria que uma puta velha. Se, ao menos, estivesse vestida. Gostava mesmo era de arrancar a tua roupa. Rebentar. Rasgar. Assim, quase nua, calcinha muito sem graça, não lhe agradava.
Disse que todas choram. Mas eu era a pior. Se a mulher soubesse a bruxa que fica, nunca mais chorava. Grande merda.
Chegou a mandar que botasse uma saia e blusa. Sapato de salto alto. Ou, melhor, um vestido. Vermelho, se tivesse.
Então olhou o relógio. E desistiu. Porra. E mais porra.
— Que tanto chora e treme e se desespera? O que tem de mais? Pensa que é a primeira? E a única? Nem é tão ruim assim. Algumas bem que gostam. Uma ruiva, quando eu saía, pediu que voltasse. E quis me dar uma rosa ou cravo, sei lá.
Ofendido e gaguejando.
— Mas eu avisei: "Macho não ganha flor."
Me olhou de soslaio.
— O que eu quero...
Enxugava a cara molhada de suor — e sem tirar o óculo escuro.
— ...vou lá e me sirvo.
Jogou a toalha num canto.
— Ah, se eu tivesse tempo. Porra. Já te ensinava o que é bom. Porra.
Uma hora tinha se passado. Uma hora que, no relógio parado da memória, se repetiria em mil horas inteiras de tortura e terror. E pelo resto da vida quantas vezes seria eu, indefesa no sonho, o pasto de tal bicho espumante de raiva?
Afinal ele parava de tentar. E fechou o zíper da calça.
Já não me olhava de frente. Acho que com vergonha, já pensou? Porque nada tinha conseguido.
— Agora te deixo aqui pelada.
Chutando o roupão debaixo da cama.
— Você desta vez se livrou.
Ressentido e com ódio.
— Só porque é uma vadia de olho azul. Como aquela outra.
Recolheu no chão a sua velha mochila.
— Senta aí na cama. Não se mexa daí. Até eu bater a porta. Senão eu volto. E será pior pra você. Ouviu, sua puta?
Foi catando na penteadeira o meu relógio de pulso, o celular, o cartão do banco. E, no estojinho azul de porcelana — ai, não —, até umas pobres jóias que a avó deixou.
Antes de sair, espiou em volta.
— Me dá a calcinha.
Que desgracido.
Colheu a última peça. Macho não ganha flor. Se olhou demorado no espelho. Ainda surpreso e incrédulo, gaguejante.
— Que porra. Isso nunca me aconteceu!
Ajeitou o óculo escuro e o boné vermelho. Gostou do que viu. O que eu quero, vou lá e me sirvo.
E lá se foi.
Tremendo e chorando, me vesti todinha. Mas não deixei o quarto. Ali sentada, chorando e tremendo, até a volta de minha mãe.
Nunca mais ela esqueceu de fechar a porta. Com dois giros na chave.
Cada dia a gente notava a falta de algum objeto. Mas isso era o de menos.
Mudamos de bairro. Fiz tratamento com uma terapeuta. Tomei tranqüilizante e antidepressivo. Dois a três comprimidos por dia, mas pouco adiantou.
Uma vez engoli um punhado deles. Não foi o bastante. Só dormi uma noite e um dia inteiro.
Na mesma cama, do olhinho de vidro escorrendo uma lágrima azul, essa boneca toda em cacos.
O noivo, que me adora, apoiou sem reserva. Ao meu lado no desespero e no horror. Não perdeu a esperança. E me salvou de mim mesma.
Seis meses depois, casamos.
Deve ser problema meu, sei lá. O nosso relacionamento não está dando certo.