Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 11, 2006

O significado do "não" a George W. Bush

Reprovado

Enfim, os americanos entenderam o que todo
mundo sabia: o bushismo se esgotou. O que
a derrota eleitoral do Partido Republicano
significa para a economia mundial, para o
Brasil e para uma armadilha chamada Iraque


Diogo Schelp

Kevin Lamarque/Reuters
A SOLIDÃO DO PRESIDENTE
Bush ao final da entrevista coletiva em que anunciou novas diretrizes de governo após a derrota republicana no Congresso: um presidente diminuído

EXCLUSIVO ON-LINE
Em Profundidade: A Era Bush

Os americanos entenderam, finalmente, o que o resto do planeta sabia havia bastante tempo: George W. Bush está errado. O massacre eleitoral do Partido Republicano, na semana passada, teve o impacto de um Tomahawk junto à Casa Branca. O foguete trouxe a mensagem de que os americanos querem mudanças de curso no governo, sobretudo na condução da guerra no Iraque. Em uma reação instintiva, o presidente demitiu o secretário de Defesa, Donald Rumsfeld, arquiteto do fiasco iraquiano. Bush não é agora apenas um pato manco – como os americanos definem seus presidentes fracos sem direito a disputar outros mandatos –, mas também um pato depenado. Minoritário no Senado e na Câmara dos Deputados, Bush agora vai governar de mãos dadas com seus inimigos, os democratas. Não pode haver pior cenário para alguém que parecia exercer um poder dinástico. Agora George W. Bush, filho de George (ex-presidente dos Estados Unidos) e irmão de Jeb (governador da Flórida), terá de aceitar a coabitação com a gentinha que ele até a semana passada desprezava.

David Hume Kennerly/Pool/AP
O PAI DE TODOS OS FIASCOS
Donald Rumsfeld, o arquiteto da desastrada guerra no Iraque: demissão sumária para atender à vontade das urnas


O sistema bipartidário força os americanos a se dividir em dois campos opostos – e não, como ocorre no Brasil, entre meia dúzia de partidos principais. Há momentos em que forças poderosas e figuras carismáticas mudam o cenário e unem o país em torno de um propósito maior. Franklin D. Roosevelt e seu governo de consenso são um bom exemplo. Bush não chega aos calcanhares de Roosevelt em nenhum grau de grandeza. Mas usufruiu um voto de confiança concedido por uma nação ultrajada por um ataque covarde. Depois dos atentados de 11 de setembro de 2001, a popularidade do presidente, somada à subserviência da oposição democrata, adquiriu os contornos de uma carta-branca. O que o presidente e seus companheiros neoconservadores fizeram, como sintetizou o Wall Street Journal, foi desperdiçar a chance de uma vida. O grupelho de lunáticos reunido em torno de Bush, ao estilo de um politburo soviético, transformou o que deveria ser a cruzada mundial contra o inimigo comum da civilização, o terrorismo, numa inacreditável tentativa de virar de cabeça para baixo a geopolítica no Oriente Médio.

Kevin Lamarque/Reuters

ENTRE INIMIGOS
Bush recebe na Casa Branca a democrata Nancy Pelosi, a nova presidente da Câmara: na campanha, ela disse que, pego em mentiras, o "rei está nu"

A guerra no Iraque, como escreve Roberto Pompeu de Toledo em sua coluna nesta edição de VEJA, é uma criação tão própria, assinalada de modo tão inconfundível pela grife do bushismo, com suas inerentes características de prepotência e auto-engano, que não dá para acreditar que outro presidente americano seguiria a mesma linha. Bush atolou o país em uma aventura militar no Iraque, isolou os Estados Unidos de seus aliados tradicionais e criou campos de concentração que envergonham a tradição libertária americana. Não fez nenhuma tentativa séria de encontrar fontes alternativas de energia para diminuir a dependência em relação ao petróleo e ajudar a enfrentar o aquecimento global – ao contrário, opôs-se ao Tratado de Kioto, para o controle de emissão de poluentes. Na economia, de forma inesperada para republicanos, pôs-se a gastar com a discrição de marinheiros bêbados. Nada disso é passado, é bom que se diga. Bush ainda será presidente pelos próximos dois anos e o que ele (e os democratas) fizer nesse período terá ainda enorme impacto nos Estados Unidos, no Brasil e no mundo. Mas uma derrota completa, com claros sinais de desaprovação da maioria, terá conseqüências.

A seguir, VEJA analisa os impactos globais da derrocada do bushismo.

Scott Peterson/Getty Images

O PREÇO DA GUERRA
Soldados americanos carregam ferido em combate perto de Falluja, no Iraque: tentativa de Bush de reorganizar a geopolítica do Oriente Médio acaba em atoleiro

IRAQUE
O DESAFIO É SAIR SEM DEIXAR SÓ CAOS PARA TRÁS

Os americanos foram claros nas urnas: querem mudanças na condução da guerra. Mas quais mudanças? Não há consenso a respeito disso nem entre os democratas. Uma retirada precipitada das tropas poderia acabar com o Iraque convertido numa colônia do Irã e num santuário para terroristas. Apesar da derrota eleitoral, Bush dificilmente aceitará uma solução desse tipo. Ex-diretor da CIA, Robert Gates, o novo secretário de Defesa, é mais pragmático e menos ideológico que Donald Rumsfeld. Mas tem poucas opções: 1) retirada imediata; 2) envio de mais tropas para tentar conter o caos; 3) estabelecer um cronograma de retirada gradual. "O mais provável é uma saída gradativa das tropas, depois de criada uma federação que divida o território iraquiano e a receita do petróleo entre xiitas, sunitas e curdos", disse a VEJA o sociólogo americano Larry Diamond, que foi assessor do governo provisório em Bagdá no início de 2004.

BRASIL
O RETORNO DE UM VELHO FANTASMA, O PROTECIONISMO DOS DEMOCRATAS

Àprimeira vista, a vitória democrata pode dificultar as negociações que envolvem a importação de produtos brasileiros. "Os brasileiros tendem a simpatizar com os democratas, mas a verdade é que tradicionalmente eles defendem mais barreiras às importações do que os republicanos", diz Rubens Barbosa, ex-embaixador em Washington e Londres. O novo Congresso é realmente mais protecionista. Muitos deputados defendem os interesses dos produtores de laranja da Flórida e dos sindicatos em geral. "Por outro lado, existe uma ótima química entre o presidente Bush e Lula", acredita o embaixador José Botafogo Gonçalves, presidente do Centro Brasileiro de Relações Internacionais, no Rio de Janeiro. "É difícil dizer como eles podem se comportar para beneficiar a si próprios depois da vitória democrata, mas isso deve acontecer." Os democratas também gostam de Lula. Nos Estados Unidos, o Brasil é visto como uma força moderadora na América Latina. Ao lado da Argentina, do Chile e do Peru, funciona como contraponto ao discurso antiamericano de Hugo Chávez. Há algumas questões urgentes, como a votação do Sistema Geral de Preferências (SGP). Trata-se da isenção de tarifas de importação para uma lista específica de produtos de países em desenvolvimento. O programa expira em 31 de dezembro e os 132 países favorecidos – entre eles o Brasil – torcem para que os republicanos votem pela prorrogação antes da posse da maioria. Os democratas, é quase certo, vão criar problemas na hora de votar. Quanto à Alca, esqueça, o assunto está praticamente morto.

PROLIFERAÇÃO NUCLEAR
OS AIATOLÁS ATÔMICOS E O LOUCO
NORTE-COREANO CONTINUAM NA MIRA

Em termos de política externa, as eleições giraram em torno do Iraque e do comércio internacional. O risco de o Irã e a Coréia do Norte, dois Estados de maus bofes, possuírem armas nucleares preocupa por igual republicanos e democratas. Os políticos americanos costumam ser firmes em assuntos que consideram de interesse nacional – e o eleitorado igualmente nada tem de pacifista ou ambíguo diante de uma ameaça direta. Bush tem a opção de manter a estratégia de pressionar os aiatolás a desistir das ambições atômicas sob o risco de sofrer sanções, ou de partir para a solução militar, bombardeando os reatores do país. A segunda hipótese é improvável, visto que não poderia se dar ao luxo de outro atoleiro simultâneo ao do Iraque. "A política de pressão diplomática tem a aprovação dos democratas, que gostam da forma multilateral como a questão iraniana vem sendo tratada", diz a cientista política americana Tamara Wittes, do Instituto Brookings, em Washington. Bush deve continuar nessa linha, que conta também com o apoio da Europa, da China e da Rússia.

Oswaldo Rivas/Reuters

CONTINENTE PERDIDO
Vitória de Ortega, um afilhado de Chávez, na Nicarágua, na semana passada: Washington deu as costas à América Latina

AMÉRICA LATINA
MAIS SIMPATIA. MAS O INTERESSE
SERÁ O DE SEMPRE: NENHUM

Um tema de convergência entre Bush e democratas é a necessidade de regularizar a situação dos 12 milhões de imigrantes ilegais, na maioria latino-americanos. O presidente não conseguiu avançar nesse assunto por oposição de seu próprio partido, que prefere erguer muros nas fronteiras e realizar expulsões sumárias. A questão é importante nas relações com vários países, como o México. Mas nada tem a ver com a questão básica: a negligência nas relações com os vizinhos do sul. Isso se deve, em parte, ao foco excessivo da política externa americana no Oriente Médio. O abandono deu espaço para a expansão populista, com Hugo Chávez à frente da turma. Na única eleição em que os Estados Unidos tomaram partido, na Nicarágua, na semana passada, venceu um velho inimigo, o sandinista Daniel Ortega, financiado por Chávez.

EUROPA
ELA VENCEU JUNTO COM OS DEMOCRATAS

Muitos aliados tradicionais, afastados pela arrogância e pelo unilateralismo de Bush, estão festejando os resultados das eleições e esperam pelo retorno da sanidade nas relações diplomáticas. "A atitude mais conciliadora, que já vinha sendo adotada desde a reeleição de Bush, em 2004, deverá se aprofundar nos últimos dois anos de mandato", diz a americana Kimberly Morgan, professora de assuntos internacionais da Universidade George Washington, em Washington. O reforço no esforço diplomático americano é urgente porque muitos chefes de governo europeus, como o inglês Tony Blair, estão sendo substituídos. Em geral, os novos são ainda mais reticentes à política de George W. Bush.

Mohammed Salem/Reuters

ESQUECIDOS POR BUSH
Palestinos exibem criança morta em bombardeio israelense, na semana passada: Bush foi à guerra no Iraque, mas ignorou o conflito entre árabes e israelenses

PALESTINA
SAI O BUSH FALCÃO. FAZER A PAZ
SERIA SEU LEGADO HISTÓRICO

Engajar-se em uma solução para o conflito árabe-israelense seria uma boa opção para Bush amenizar o fiasco de sua política externa, marcada pela derrota no Iraque, pelo aumento do terrorismo global e pelas ambições nucleares irrefreáveis de Irã e Coréia do Norte. A história mostra que negociar a paz no Oriente Médio é uma tarefa que demanda tempo e intenso esforço da diplomacia americana – talvez não reste a Bush tempo para tanto. Nos últimos seis anos, o presidente deixou claro que a encrenca israelo-palestina não estava entre suas prioridades. Preferiu assistir de longe ao aumento das tensões e dar apoio diplomático a Israel, país que vê como um aliado na guerra contra o terror, sempre que necessário. "Nos próximos anos, a política externa americana deve continuar concentrada no Iraque, porque os democratas tampouco têm um projeto definido para a questão palestina", acredita a inglesa Rosemary Hollis, especialista em relações internacionais da Chatham House, em Londres.

ECONOMIA MUNDIAL
ESQUEÇA AS BRAVATAS DOS DEPUTADOS.
NINGUÉM FREIA O COLOSSO AMERICANO

Aeconomia americana é um colosso em moto-contínuo: ela se movimenta por inércia. Não são as decisões isoladas de um governante ou de algumas centenas de parlamentares que vão mudar de maneira radical o seu rumo. O que move os Estados Unidos é a força da globalização, com todo o seu intrincado mecanismo de causas e conseqüências. Os democratas podem aprovar uma lei para aumentar o salário mínimo, mas a verdadeira pressão para reduzir o valor do trabalho de um operário americano com baixa qualificação é feita pela competição com os produtos fabricados com a mão-de-obra barata da China, da Índia e de outros países emergentes. Uma prova de que os políticos em Washington já não são a maior força da economia do país é que o valor das importações americanas está quase alcançando o total anual da arrecadação do governo com impostos. A mão invisível do mercado, como dizia Adam Smith, é mais poderosa que a do presidente Bush ou dos congressistas – basta não ficar muito no caminho. Nem sempre foi assim. Até poucas décadas atrás, podia-se manipular o crescimento econômico simplesmente com a decisão do banco central americano de elevar ou baixar taxas de juro. Hoje, bem mais relevante é como estão o desempenho econômico e o fluxo de mercadorias e investimentos entre os principais parceiros comerciais – com a Ásia ou a Europa, por exemplo. Essa maior interdependência da economia mundial serve para os dois sentidos: se os Estados Unidos vão bem, o resto do mundo também vai, e vice-versa.

GUERRA AO TERROR
OS TERRORISTAS NÃO DEVEM
ACHAR QUE ESTÃO GANHANDO

O maior risco no momento é os terroristas pensarem que estão ganhando e que os Estados Unidos irão fraquejar. Não é nada disso. O cerne da política externa de Bush continuará a ser a guerra ao terror. Ele acredita que os atentados de 11 de setembro marcam o surgimento de um novo mundo e que os terroristas preparam novos ataques aos Estados Unidos (no que tem razão). O que esteve em julgamento nas eleições não foi a guerra ao terror – que os americanos apóiam –, mas o conflito no Iraque, que tirou as tropas do foco, que deveria ser a caçada a Bin Laden e sua gente. Diz o cientista político americano David King, professor da Universidade Harvard: "Nada deve mudar, porque os democratas, de olho nas eleições presidenciais de 2008, não querem ser vistos como um partido que fraqueja na luta contra o terrorismo".

Com reportagem de Denise Dweck, Duda Teixeira, Thomaz Favaro e Gabriela Carelli

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