Entrevista:O Estado inteligente

sábado, novembro 11, 2006

Como Marílson venceu a Maratona de Nova York

Um fenômeno genético

Físico adequado, treinamento duro e tática
correta explicam como Marílson Gomes dos
Santos quebrou a hegemonia africana na
maratona mais famosa do mundo


André Fontenelle


O que mais surpreendeu a imprensa americana na Maratona de Nova York, no domingo passado, não foi o triunfo de um brasileiro relativamente desconhecido, Marílson Gomes dos Santos, e sim o fato de ele não ser africano. Afinal, atletas da África haviam vencido as nove edições anteriores da maratona mais badalada do mundo. Seis dessas vitórias foram de quenianos. Oito dos quinze primeiros colocados na prova vencida por Marílson eram do Quênia.

Os quenianos surgiram no cenário do atletismo em 1968, nos Jogos Olímpicos do México. De lá para cá, eles se tornaram, de longe, os mais bem-sucedidos nas chamadas "provas de fundo". É tamanha a supremacia desse país pobre, de apenas 35 milhões de habitantes, que há alguns anos cientistas têm se dedicado a estudar os genes dos quenianos – especificamente no grupo de tribos Kalenjin, que habita o vale do Rift, a 1 500 metros de altitude, de onde saem 45% dos campeões do país, embora a região tenha apenas 10% da população.

É inegável que o genoma influencia o desempenho esportivo. "Marílson é um fenômeno genético", diz seu treinador, Adauto Domingues. Duas vezes vencedor da São Silvestre e recordista brasileiro dos 5 000 e dos 10 000 metros, o atleta tem uma capacidade pulmonar incomum. Seu índice VO2max, que quantifica a captação máxima de oxigênio durante o exercício, é de 83, alto mesmo entre atletas (no homem comum, fica em torno de 45). Marílson é magro (58 quilos em 1,76 metro) e seco. Sua taxa de gordura é de 4%, contra 15% de um homem em boa forma. Tudo isso ajuda em uma maratona – embora a falta de gordura o faça sentir muito frio. "Tive de usar gorro, luvas e proteção nos braços em Nova York", conta o corredor, que enfrentou uma temperatura de 6 graus.

O mapeamento específico dos genes que podem tornar um ser humano muito mais veloz ou resistente do que outros ainda está sendo feito pelos cientistas. O corpo humano resulta da combinação de aproximadamente 20.000 genes. Muitos deles não têm nenhuma relação com o desempenho esportivo, mas já foram identificados alguns poucos que fazem diferença. "São conhecidos pelo menos 170", diz Rodrigo Gonçalves Dias, pesquisador do laboratório de genética e cardiologia molecular do Instituto do Coração de São Paulo e um dos maiores especialistas do assunto no Brasil. Um caso curioso foi descoberto na Finlândia. Na década de 60, o esquiador Eero Mäntyranta foi acusado de doping, devido a seus resultados assustadoramente superiores nas provas de esqui de longa distância. Quatro anos atrás, a análise do DNA da família Mäntyranta mostrou que ele e alguns parentes são portadores de uma raríssima mutação que lhes confere níveis elevados de hemoglobina – e, com isso, muita resistência. Outros atletas só alcançariam Mäntyranta à custa de muito doping.

Não existe evidência de que os nativos do vale do Rift portem alguma mutação genética. "Os dados disponíveis até agora nada revelam a esse respeito", comenta o professor Yannis Pitsiladis, da Universidade de Glasgow, na Escócia, que dirige um centro de estudos voltado para o assunto. No ano passado, Pitsiladis participou da análise do DNA de 376 quenianos, 291 deles atletas de alto nível e 85 da população em geral. Procurava-se quantificar uma determinada alteração em um gene responsável pela produção de uma enzima que melhora a resistência física. Não foi achada uma proporção anormal.

Mesmo que os "genes do maratonista" viessem a ser encontrados, eles não explicariam sozinhos o sucesso dos quenianos. O país tem ambiente favorável à detecção de talentos, com grande popularidade para o atletismo, e a própria altitude em que vive boa parte dos atletas é responsável pela elevação da taxa de glóbulos vermelhos no sangue. Marílson, por seu lado, treinou um mês na altitude de Campos do Jordão, antes de embarcar para Nova York, e costuma passar temporadas a 2.600 metros, na cidade colombiana de Paipa, que virou uma meca para os maratonistas.

A questão financeira também conta. O pesado treinamento para uma maratona – Marílson chega a fazer 200 quilômetros por semana – só vale a pena quando há uma boa recompensa. Para os quenianos, correr é uma forma de fugir da pobreza. Marílson, que teve uma infância humilde na cidade-satélite de Ceilândia, no Distrito Federal, também vive do esporte. "O atletismo transformou a minha vida", diz. Pela vitória em Nova York, ganhou 155.000 dólares (cerca de 350.000 reais) e um ano de supermercado grátis de um patrocinador. Espera-se que isso não eleve sua taxa de gordura: seu sonho é disputar a maratona olímpica de Pequim, em 2008.
Foto Reuters
Marílson ao vencer: proteção especial para resistir ao frio de 6 graus nas ruas de Nova York

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