Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, novembro 09, 2006

Ganhou um conservador

Ganhou um conservador

Artigo - Gilberto de Mello Kujawski
O Estado de S. Paulo
9/11/2006

O jogo está empatado. Fernando Henrique foi eleito e reeleito. Lula, idem. Inútil desafiar o candidato-presidente, que concorre no uso e gozo do cargo, em absurda e injusta desigualdade de condições com os demais candidatos. Geraldo Alckmin até que fez bonito ao ganhar quase 40 milhões de votos no segundo turno. Alckmin desmentiu o clichê de “tímido” que ainda teimam em repetir. Quem sabe o que quer e o afirma categoricamente não pode ser chamado de tímido. “Agressivo”, “arrogante”? Quase ninguém respeita a semântica, nem mesmo na imprensa, o que é imperdoável. Confunde-se indignação cívica com agressividade, e firmeza com arrogância. Alckmin perdeu, mas saiu engrandecido da derrota. Lula ganhou, mas ficou apequenado pelas mentiras com que manipulou a opinião pública.

Ao festejarem a vitória do petista, creio que seus eleitores compraram gato por lebre. Pois, se existe no momento um político conservador “nesse país”, é Luiz Inácio. Há dois tipos de político conservador. O aparente, que marca passo até surgir a oportunidade para mudar e, então, muda. E o conservador de verdade, que marca passo compulsivamente e não sabe aproveitar a oportunidade para a mudança, por convicção, covardia ou excesso de cautela. Este é Lula. Apesar de seu estilo apaixonado, de tanta fanfarronice e da oratória desabusada, ninguém se engane: a trajetória política do sindicalista de São Bernardo em seus quatro anos de mandato exibe um político extremamente cauteloso, no feitio dos coronéis do sertão. Esta semelhança deve atuar no imaginário das massas dos grotões e até das grandes cidades para render-lhe tantos votos. Não se espere de Lula nenhuma medida mais ousada, exigida pelas circunstâncias, nenhum reformismo para valer, nenhum pioneirismo em busca da modernização responsável. Sua política econômica, baseada no controle da inflação, nos juros altos, nos impostos escorchantes, no Bolsa-Família e na cesta básica, é exatamente a política recomendada para manter o País, “esse país”, no subdesenvolvimento.

Como diz um jornal de grande circulação, “desde a queda de Palocci em março é Lula quem tem feito o contraponto ‘conservador’ nas discussões do governo sobre economia”. Tarso Genro, irrefreável boquirroto, apoiado por Dilma Rousseff e Guido Mantega, anunciou o “fim da era Palocci”, tão logo foi proclamada a vitória do petista. Lula não gostou e tratou de enquadrar aqueles subordinados malcomportados. Segundo um ministro do governo, “há um sentimento difuso no PT de que é preciso mudar a economia, mas Lula não concorda”.

Bobagem temer os arroubos extremistas de Lula, porque não existem. Ao contrário, Lula precisa de alguém que ponha fogo no seu espírito cauteloso, velho Brasil típico, coronelesco. Alguém que não se chame Tarso Genro, Guido Mantega ou Dilma Rousseff, que podem fazer a emenda pior que o soneto e, querendo pôr fogo em Lula, acabar pondo fogo no circo.

Sem mudanças efetivas na economia, a vitória de Lula será um gigante com pés de barro. Houve tempo, no governo militar, em que um general-presidente disse que o Brasil ia bem, “o povo é que vai mal”. Agora é o contrário: o povo pensa que vai bem porque está comendo melhor, e o País (a economia) é que vai mal.

Da parte de Lula, nada a temer, exceto o imobilismo. “Não troque o certo pelo duvidoso” foi seu mote na campanha. Lula não gosta de se arriscar, e sem assumir riscos nenhum político faz nada de bom, principalmente em tempo de crise. Com Alckmin seria diferente. Este cumpre o que promete. No seu espírito missionário, com algo de espartano, estava disposto a mudar de verdade, não só na retórica de palanque, e a enfrentar os riscos que fossem necessários. Com Lula vai continuar o Brasil do faz-de-conta, até a hora em que o Brasil real despertar, quando haverá muito choro e ranger de dentes. Lula não quer mudar nada. Bonachão, só quer surfar na estabilidade, sem perceber que esta degenerou em estagnação.

Que o povão tenha voltado em peso em Lula se entende. Nada a censurar. O que não se compreende é o crédito emprestado ao petista por intelectuais simpatizantes mais da pessoa do que das teses de Lula. Uma simpatia esquisita, que parece um namoro dos mais melosos. O intelectual de esquerda faz de Lula o seu herói impoluto. Dirige-lhe um olhar quebrado, em que há fascínio, ternura e admiração. Acredita piamente no “carisma” de Lula, essa invenção devida a Frei Betto, com a chancela do clero militante da Teologia da Libertação. Leonardo Boff chega a escrever sua declaração de amor, repassada de misticismo delirante. “Sua inteligência pertence ao seu carisma: desperta, arguta, indo logo ao coração dos problemas e sabendo formulá-los do seu jeito, sem passar pelo jargão científico.”

A saia-justa é a seguinte: está escrito na cartilha marxista que o decisivo é a realidade econômica, e as idéias se reduzem a simples “superestruturas” ornamentais e subordinadas. As idéias não dirigem a História, não passam de exalações passageiras e instáveis dessa realidade maior e definitiva que está na base de tudo, que é a economia. As idéias passam, a economia fica. Ora, o que se verificou foi justamente o contrário. A economia marxista, onde teve aplicação prática, fracassou redondamente (menos na China, que violou a cartilha). Ao passo que as idéias marxistas perduram, fortemente enraizadas no mundo todo. Pela lógica, o fracasso da economia marxista deveria arrastar consigo as idéias de Marx. Não foi o que aconteceu. A economia concebida pelo socialismo científico não se mantém sobre as pernas, enquanto as idéias correspondentes estão de pé, alimentando os corações e as mentes dos messias socialistas. Por essas e outras é que Marx, uma inteligência superior, dizia com fina malícia: “Eu não sou marxista.”

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