Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 05, 2006

DANIEL PIZA

Depois das urnas

E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br

Daniel Piza

Lula foi reeleito porque as pessoas acham que ele merece oito anos como FHC. Só se tivesse feito um estrago na vida econômica é que ele seria enxotado do poder pelas urnas. Foi isso que Duda Mendonça ensinou ao PT em 2002, fazendo dele o principal tributário do desgaste de oito intensos anos de tucanato.

O pobre vota em quem lhe garante comida mais barata no prato. Seja o candidato latifundiário, seja pau-de-arara. Se for “um de nós”, há uma razão a mais para anistia. E muitos da classe média vão junto: se minha vida não piorou, posso escolher alguém que tem feito “algo pelos pobres” - mesmo que pudesse ter feito muito mais. Brasileiro é tudo menos exigente.

Alckmin só venceu em sete Estados e só em Roraima obteve mais que 55% dos votos. Fica difícil falar, portanto, em “país dividido” por regiões e mesmo por classes. Lula teve vitória ampla nos chamados grotões, sim; mas nas regiões mais desenvolvidas é que faz sentido falar em divisão, jamais em hegemonia tucana. Tanto é que foi onde Lula mais reconquistou espaço do primeiro para o segundo turno. Com quase 61% dos votos válidos, praticamente repetiu 2002.

Achei divertida a quantidade de articulistas que tentaram explicar por que Lula ganhou as eleições ou por que Alckmin perdeu. Depois é fácil... São os “engenheiros de obra feita”. Antes a maioria apostava em derrota ou vitória apertada e dizia clichês como “segundo turno é outra eleição”.

Por que os antilulistas, em particular, erraram tanto sobre o destino de Lula? Primeiro, porque têm preconceito - Lula seria um ditador ou lançaria guerra civil - e não conhecem o Brasil; supõem que mensalão pode ferir como inflação ou demissão. Segundo, e mais importante, por “wishful thinking”, por confundir desejo com realidade; queriam tanto Lula fora, e se achavam tão poderosos a ponto de derrubá-lo, que esqueceram de respeitar os fatos.

Alckmin pode ser um político menos populista e ter apresentado um programa ligeiramente melhor (corte de gastos e impostos, abertura comercial, retomada das agências reguladoras), mas o PT tomou posse das conquistas mais claras do PSDB, como a queda da inflação, os programas sociais e o impulso exportador. O candidato tucano deveria ter usado linguagem mais clara: “O Brasil está parado”, “Não é verdade que o PT pode fazer mais pelos pobres”, etc.

O que cola mesmo, na maioria de qualquer classe, é a noção “getululista” de que o Estado deve ser uma espécie de Robin Hood - colher impostos dos ricos para distribuir renda aos pobres. Como se a imensa dívida social do País não tivesse sido causada justamente pelo Estado. E como se não fosse a sociedade que alimenta o Estado, e sim o contrário.

Lula foi contra o Plano Real. Agora se gaba da inflação em 3%. Lula foi contra a privatização. Agora se gaba dos lucros e das exportações das grandes empresas. Lula foi contra a reeleição. Agora está reeleito.

Até na reeleição, calcada no declínio dos índices de extrema pobreza, o governo Lula segue o anterior. É claro que o PSDB fez coisas que o PT não fez: enfrentou tabus como inflação e privatização e lançou alguns outros instrumentos de modernidade como a lei fiscal. Mas não adianta negar acertos relativos do governo Lula, como dobrar o Bolsa Família (ainda que sem a contrapartida do planejamento familiar e com o prejuízo de outros investimentos sociais) e algumas medidas macroeconômicas (desdolarização da dívida, aumento das reservas, etc.). Poucos, mas politicamente profícuos.

“A mídia precisa de auto-reflexão”, soltou o presidente do PT Marco Aurélio Garcia, enquanto militantes do partido agrediam repórteres em Brasília e a PF interrogava jornalistas da Veja. Ele disse também que o mensalão foi apenas “esquema irregular de financiamento de campanha”. Se foi irregular, então por que ainda não foi punido? Se foi para financiamento de campanha, por que foram feitos depósitos pessoais a políticos aliados no BMG e Rural? E por que Marcos Valério ganhou tantas licitações públicas no governo Lula?

Em matéria de corrupção o PT teve poucos concorrentes na história. O problema não é só o dinheiro perdido; é o atropelo às instituições e aos valores. Do caso Waldomiro ao dossiê Vedoin, passando pelo valerioduto, pela quebra do sigilo do caseiro e pelo caso das cartilhas, o acúmulo de escândalos verdadeiros, comprovados, foi extraordinário mesmo para os padrões nacionais. O máximo que ele fez, por causa das pressões, foi afastar seus protagonistas, mas até agora nenhum deles vê o sol quadrado.

Algumas coisas o PT nunca vai recuperar: acima de todas, a qualificação - que ouvi durante anos e anos de amigos, parentes e colegas - de “único partido ideológico” do Brasil, que seria menos corrupto, que jamais faria aliança com oligarquia, que seria porta-voz do desenvolvimentismo contra o neoliberalismo e que seria eficiente, como teria demonstrado em prefeituras. Não.

No cômputo geral, depois de 9 anos de planos suicidas e demagogos oligárquicos, devemos ir para 16 anos de crescimento medíocre, sem reformas a fundo, com a máquina pública a vampirizar mais e mais a atividade econômica, como se vê nessa espécie de apagão do setor aéreo. Por que você acha que Lulinha agora só faz discursos cheios de amor para dar?

O LUDOPÉDIO

Um filme e um livro em lançamento usam o futebol como referência afetiva e chegam a bons resultados. O filme é O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias, de Cao Hamburger, e é melhor que aquele triunfalista O Milagre de Berna, que fez muito sucesso na Alemanha e no mundo. Conta a história de um menino, Mauro (Michel Joelsas), cujo pais se escondem da repressão militar e o deixam na casa do avô (Paulo Autran) no Bom Retiro em 1970. A cena é um tanto inverossímil, mas esquecemos isso assim que Autran aparece e em dois minutos deixa sua marca grandiosa. O garoto passa a ser cuidado pelo vizinho judeu (Germano Haiut, muito bom) e, enquanto espera pelos pais, brinca de goleiro, assiste aos jogos do Brasil na Copa e desenvolve relacionamentos no bairro (como a menina feita por Daniela Piepszik, outra revelação). O filme equilibra bem o lírico, o dramático e o divertido e tem algumas cenas memoráveis, com detalhes bem observados, como aquela em que o menino vaga ao vento pela rua vazia, cheia apenas de bandeirinhas.

O livro é O Segundo Tempo, de Michel Laub (Companhia das Letras), em que volta a um tema semelhante ao de seu livro de estréia, Música Anterior, melhor que o segundo, Longe da Água. É a história de um irmão mais velho que, na semana que antecede o “Gre-Nal do século”, em 1989, precisa contar ao mais novo sobre uma decisão tomada por seu pai. O forte da novela não é o entrecho, mas a descrição que Laub faz do tênue dilema do adolescente, que pode levá-lo para a revolta ou para o estoicismo e ambas as reações seriam compreensíveis. É na arquibancada, diante da derrota de seu time, que ele toma sua decisão, ciente de que ela lhe custaria a própria capacidade de entrega, de pleno envolvimento. A civilização é, muitas vezes, assumir “a mentira de que você quer estar ali e era isso que faria se pudesse escolher”, como diz o narrador. Como em Milton Hatoum, há em Michel Laub sempre o recurso de um toque sutil nos instantes mais dramáticos.

UMA LÁGRIMA

Para o maestro Rogério Duprat, que ficou conhecido pelos arranjos do disco Tropicália, embora tenha feito trabalhos igualmente bons para Chico Buarque, Jorge Ben e os Mutantes. É curioso como o Tropicalismo foi um movimento estudado em sua aclamação da espontaneidade, das roupas às letras, das referências aos protestos. Sem a colagem instrumental de Duprat, que misturava guitarra elétrica com percussão acústica, melodias fáceis com ruídos e dissonâncias da vanguarda musical dos anos 60 - fortemente inspirado no trabalho do produtor George Martin para os Beatles -, o impacto jamais seria o mesmo. Fez algo que seria inconfundivelmente seu.

POR QUE NÃO ME UFANO

No Brasil não houve discriminação racial explícita e genérica, a segregação que marcou outros povos, mas daí a dizer que não existe racismo, como dizem críticos das cotas, é ir longe demais. Não há por que menosprezar o peso de sua versão velada, episódica, que vemos surgir em casos lamentáveis - como agora o da fila do SUS - ou na raridade de negros em posições altas ou lugares caros, e muito menos sua versão institucional, pois serviços públicos como a polícia estão eivados de racismo. O problema é estabelecer sistema de cotas em que elas se sobrepõem ao mérito (em vez de se somar a ele, como ocorre nos EUA). Questão complexa exige solução complexa.

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