Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, novembro 10, 2006

Causa de morte: governo



Artigo - Hiram Silveira Lucas
O Globo
10/11/2006

O governo sabe que ele é a segunda causa de morte entre as doenças no Brasil.

As estimativas oficiais indicam que mais de 472 mil novos casos serão diagnosticados neste ano - cerca de 85% deles sujeitos às limitações do atendimento do Sistema Único de Saúde (SUS).

Outros números revelam uma tragédia: cerca de 90 mil pessoas (ou seja, quase 20% do total de casos) vão morrer de câncer em 2006, fundamentalmente porque não existem aparelhos de radioterapia suficientes para tratá-las.

Em todo o país, existem 258 equipamentos de radioterapia, 40 deles funcionando fora dos requisitos básicos da própria agência reguladora do Ministério da Saúde. Ou seja, podem fazer mais mal do que bem. E seriam necessários 566 aparelhos para atender adequadamente à população brasileira - portanto, um déficit reconhecido de 308 equipamentos.

Para ficar apenas numa região do Rio de Janeiro, o Hospital Mário Kröeff, que é filantrópico, tem hoje 241 pacientes à espera de tratamento, embora trabalhe no limite máximo de sua capacidade (de 6h às 23h diariamente).

No que diz respeito às outras formas de tratamento, a situação também é calamitosa. Estima-se que 35% das cirurgias propostas não poderão ser realizadas no tempo necessário.

Em julho passado, 139 países reunidos em Washington firmaram a Declaração Contra o Câncer, em que enfatizam que "a luta contra o câncer, que será prioritária nesta década, requer esforços maciços da comunidade global, em todos os níveis".

E advertiram que 70% das mortes por câncer vão ocorrer nos países em desenvolvimento.

Mas também acenderam a luz da esperança, ao informar que 25 milhões de pessoas com diagnóstico de câncer foram tratadas e estão vivas.

A Organização Mundial de Saúde afirma que o gasto anual mínimo em saúde por pessoa deve ser de US$500. A Comunidade Européia gasta US$1.500, e os EUA, US$4.500. Já no Brasil, a despesa média é de US$128.


É claro que tamanha disparidade não pode ser corrigida da noite para o dia, mas algumas medidas devem ser tomadas de imediato. Uma delas diz respeito às instituições que se dedicam ao tratamento do câncer, cumprindo parte do que efetivamente compete ao Estado. Essas entidades, que atendem cerca de 60% de todos os portadores de câncer do Brasil, vêm sendo obrigadas a reduzir suas atividades, vergadas por dívidas insuportáveis; a maioria foi obrigada a reduzir o número de leitos, outras já fecharam.

Isto porque a tabela de remuneração pelos serviços prestados não é corrigida há quase dez anos e está absolutamente defasada. O último reajuste, na época do Plano Real (1994), foi de 35,1%. Depois, só ocorreram poucos e pequenos reajustes pontuais. No mesmo período, os transportes urbanos foram aumentados em 438%, a gasolina, em 445%, e o gás de cozinha, em 568%.

Há quase dois anos, uma proposta de reformulação mínima da tabela, elaborada por sociedades médicas da especialidade (Associação Brasileira de Instituições Filantrópicas Contra o Câncer - ABIFCC, Sociedade Brasileira de Cancerologia - SBC, Sociedade Brasileira de Oncologia Clínica, Sociedade Brasileira de Hematologia, Sociedade Brasileira de Radioterapia, Sociedade Brasileira de Cirurgia Oncológica, Sociedade Brasileira de Oncologia Pediátrica, entre outras), foi aprovada tecnicamente pelo governo, mas jamais implementada.

Em outubro, as entidades voltaram a se reunir com a Secretaria de Atenção à Saúde (SAS) do MS e ouviram a sentença: não há dinheiro no orçamento para a correção da tabela. Não deve haver mesmo, já que o número de leitos do SUS para todas as modalidades de tratamento, não apenas do câncer, caiu em 26% de 1994 a 2003, embora a população continue aumentando.

A ênfase em programas de prevenção, sempre idealizados, mas jamais realizados de fato, é fundamental. Basta olhar o que outros países conseguem meramente tornando obrigatórios baratíssimos exames, como os preventivos do câncer ginecológico (um dos mais elevados do Brasil), os de pele ou os de mama. Mas dando ênfase igualmente ao tratamento, seja clínico, cirúrgico ou radioterápico. Isso explica os 25 milhões de sobreviventes em todo o mundo a que me referi antes.

Só nos resta, em homenagem aos que morreram sem ter o direito de receber qualquer tratamento, em defesa dos que conseguem um tratamento sem os avanços que a medicina vem oferecendo, exigir que milhares de brasileiros sejam defendidos da doença pelos exames preventivos acessíveis. Só nos resta - repito - soltar este grito contra o câncer, esperando que alguém o ouça.

HIRAM SILVEIRA LUCAS é médico.

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