Entrevista:O Estado inteligente

domingo, novembro 12, 2006

ABERTA A TEMPRADA DE CAÇA Por Gaudêncio Torquato

Ao iniciar seu primeiro mandato, o presidente eleito delegou ao fiel escudeiro, na época, José Dirceu a tarefa de preparar o banquete governista com farta caça. “Animais” de alguns partidos - PTB, PP, PL e PSB - foram caçados com astúcia. Luiz Inácio apurou o olfato, aguçou a audição, avaliou o porte dos bichos da floresta partidária e montou o cardápio presidencial. Sabe-se que frango à passarinho com polenta e rabada com agrião são os pratos que mais aprecia. Evitou caçar a “manada” completa do PMDB por achar que a carne de alguns mamíferos carnívoros não combinava com a receita que imaginara para o menu governamental. Ao iniciar o segundo mandato, o presidente reeleito vai, ele mesmo, à caça na condição de espingardeiro-mor. E, para surpresa dos convivas, a mira presidencial quer acertar por inteiro os felinos peemedebistas, que, como se sabe, são animais de garras longas e curvadas, sentidos apurados e contam com uma vantagem: enxergam muito bem à noite e usam a espinha bastante flexível para subir em árvores com agilidade. Lula quer formar um criatório com esses “animais” a fim de não faltar carne nos quatro anos de mandato.
Imagem definida, entremos agora nas pistas abertas pela caçada de Lula. Para começar, a idéia presidencial de formar uma coalizão parlamentar é plausível, mas ameaça estiolar-se pela ausência de critérios capazes de lhe garantir firmeza e durabilidade. Coalizão sem alicerce de princípios não se sustenta. A liga de uma aliança deve ser a idéia, o compromisso com políticas públicas. Formar a base governista com a ocupação de cargos é construir um prédio com argamassa fofa: despencará mais ou cedo ou mais tarde. Coalizão, nesse caso, é sinônimo de colisão. O PMDB entrará no governo com seus grandes e pequenos felinos se acomodando no colchão lulista e assumindo responsabilidades. Mas o maior partido brasileiro está mais para arquipélago de capitães hereditários que para santuário de crenças. Qual a liga que une os leopardos Renan Calheiros, Roberto Requião, José Sarney e Jader Barbalho? O gostinho do poder. Conclusão: o dono do partido será Luiz Inácio Lula da Silva.
No momento em que faltar espaço para um deles, quem tem dúvida de que as unhas retráteis sairão das dobras da pele para atacar a barba presidencial? A flexibilidade da espinha dos felinos governistas é a garantia de que, seja qual for o rumo a ser dado por Lula à administração, eles estarão sempre postados na copa das árvores espreitando o momento de abocanhar um naco de carne. Terão de enfrentar um bando de aves de caça também à espreita. São os falcões, gaviões, corujas e águias do PT. Esses bichos, também carnívoros, lutarão, com suas garras fortes e seus bicos aduncos, para continuar por cima da carne-seca, na convicção de que o território conquistado por Luiz Inácio pertence, primeiramente, a eles. Mas o dono da floresta já avisou que, para eles, a cota alimentar será menor. Vão sobrar arranhões. Mais ainda: ao decidir ser ele próprio o comandante da articulação política, Luiz Inácio comete um erro crasso. Sai da condição de magistrado para assumir o papel de advogado, tanto de defesa como de acusação. Submete-se à crítica de inconformados, às barganhas de oportunistas, à sanha de traidores e às lamúrias dos caídos.
O segundo mandato coincidirá com o novo diagrama partidário. A conformação, que poderá ficar entre sete e dez agremiações, dependendo da palavra do TSE sobre a fusão de siglas, propiciará um realinhamento interpartidário, com idas e vindas de parlamentares e definição de diretrizes. O feixe de pressões e contrapressões exigirá do articulador político dedicação para administrar a base de apoios. Se o presidente decide impor as regras para a coalizão, é natural esperar que acompanhe os eventos políticos, não se descartando a hipótese de que um articulador ad hoc, Tarso Genro ou outro, não terá tanto crédito quanto a figura presidencial para negociar com parlamentares. O Palácio do Planalto, com Lula na coordenação política, dará eco à gritaria congressual. Como, porém, dedicar-se com tanto afinco à articulação, se o homem, como é sabido, tem ojeriza a lidar com balaio de gatos? Para quem deseja acelerar projetos de infra-estrutura, puxar a orelha de ministros desatentos, enfim, controlar de perto a ação governamental, fica difícil assoviar e chupar cana ao mesmo tempo. Lembre-se, ainda, que nos primeiros meses de 2007 o eixo central da discussão interna corporis versará sobre a questão pendular: o governo deve ir mais para a banda desenvolvimentista ou para a banda monetarista? A polêmica gastará energias do corpo governamental.
A probabilidade de que o figurino de articulador se encaixe bem no corpo de Lula dependerá da concepção monolítica da administração, quer dizer, de uma divisão mais racional de missões e conseqüente definição de metas. A imagem do primeiro governo foi a de uma colcha de retalhos. Nesse sentido, seria viável supor a estrutura ministerial organizada de forma mais homogênea, concentrando programas, projetos e recursos nas três grandes áreas do governo: a administrativa, responsável pela eficácia gerencial; a econômico-desenvolvimentista, com poderes para ditar e ajustar as diretrizes macroeconômicas e fortalecer as bases do crescimento; e a área social, integradora de ações de governo nas esferas da assistência, educação e saúde.
Ora, um traçado com tal configuração requer menos partilha política e maior dimensão técnica. Se não for assim, o governo será uma “salada de frutas”, exatamente o que presidente disse que pretende evitar. Os maiores partidos exigem ocupar a Esplanada dos Ministérios em regime de curral fechado. Vai haver político escapando pelas beiradas. A tal coalizão parlamentar, se assegura apoio congressual, desfigurará a unidade governamental.
A projeção é inevitável: os tiros na caçada política podem sair pela culatra. No fundo da paisagem, lêem-se os mesmos erros do passado e um sinônimo da palavra-chave da crise, conhecida como mensalão.

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