Decisão do STF que adia processo
de cassação na Câmara escancara
os antigos privilégios do Legislativo
Lucila Soares
Fotos Ailton de Freitas/Ag. O Globo e Dida Sampaio/AE |
TUDO PELO CARGO O ex-deputado Roberto Jefferson (à esq.) vai ao STF e invoca a imunidade parlamentar para tentar reverter sua cassação. O ainda deputado José Dirceu (ao centro) também recorre. Ele tomou carona na decisão do presidente do Supremo, Nelson Jobim (à dir.), que interrompeu a tramitação do julgamento dos deputados acusados de corrupção |
Na terça-feira à noite, véspera do dia em que teriam de escolher entre renunciar e enfrentar um processo de cassação no Conselho de Ética da Câmara, os deputados petistas João Paulo Cunha, Josias Gomes da Silva, Professor Luizinho, Paulo Rocha, José Mentor e João Magno de Moura recorreram ao Supremo Tribunal Federal. Alegação: não lhes teria sido suficientemente garantido o direito à ampla defesa das acusações de que são alvo. O presidente do STF, Nelson Jobim, concedeu liminar favorável, o que suspendeu a tramitação da medida disciplinar. Foi a senha para o ex-ministro José Dirceu – contra quem já corre um processo de cassação no Conselho de Ética – pegar carona e também ganhar liminar. Com mais essa decisão, os outros ameaçados de cassação (Vadão Gomes, José Janene, Pedro Corrêa e Pedro Henry, do PP, mais José Borba, do PMDB) seguiram o mesmo caminho. Para evitar novas contestações, a Câmara resolveu estender a eles o efeito da liminar concedida aos petistas. Na prática, isso significa a abertura de cinco sessões (um prazo entre uma semana e dez dias) para a defesa dos acusados. A onda de recursos não termina aí. Na quinta-feira, o dia seguinte ao da perda de seu mandato de deputado federal por 313 votos a 156, Roberto Jefferson recorreu ao Supremo. Alegação: a ação contra ele teria ferido o princípio constitucional da imunidade parlamentar.
Em relação ao recurso de Jefferson, há jurisprudência no Supremo que garante a não-revisão da decisão da Câmara. Quanto ao conjunto dos demais, existem divergências sobre a decisão de Jobim. Para alguns especialistas, o ministro nada mais fez do que assegurar aos deputados um direito reservado a qualquer cidadão. "O Judiciário pode e deve impor a observância do devido processo legal. Nesses casos, saltou-se uma etapa do procedimento de defesa. E os acusados, legitimamente, postularam esse direito", diz Luís Roberto Barroso, professor de direito constitucional da Universidade do Estado do Rio de Janeiro. Para outros, não houve cerceamento do direito de defesa. No máximo, haveria uma divergência na interpretação do regimento da Câmara – uma questão interna do Legislativo, cuja solução prescindiria do recurso ao Judiciário. Jobim teria cometido, portanto, um grave equívoco ao aceitar o recurso. E não apenas pelo aspecto jurídico. O ex-ministro da Justiça Miguel Reale Jr. alerta para o cheiro de pizza que passou a exalar do prédio do STF. "Essa paralisação pode ir longe e criar uma sensação efetiva de que haverá impunidade", diz Reale Jr.
Reprodução/Museu Imperial de Petrópolis |
DOM PEDRO I O imperador outorgou a primeira Constituição brasileira, em 1824: história de autoritarismo |
A decisão de Jobim efetivamente constitui-se em obstáculo ao cronograma original dos trabalhos da Câmara destinados a punir os responsáveis pelo escândalo em curso. É forçoso reconhecer, no entanto, que o episódio não teria a mesma repercussão se os acontecimentos não se desenrolassem sobre um pano de fundo feito de privilégios inaceitáveis. A história do Legislativo brasileiro é pontuada por casos tão pouco edificantes que, já no século XIX, o abolicionista Joaquim Nabuco, um dos políticos mais ativos de seu tempo, afirmava que "o fim dos partidos, entre nós, é explorar o governo, por outra, o tesouro público". O escritor Lima Barreto descreveu, em 1911, os motivos que levavam o protagonista de uma de suas crônicas a querer ser deputado: "Sonhava com a câmara, com dinheiro nas algibeiras, roupas em alfaiates caros, passeio à Europa". Ainda hoje, é essa perspectiva de enriquecimento e vida boa que embala o projeto de carreira legislativa de muitos parlamentares – que, entre outras prerrogativas, votam seus próprios salários e se aposentam com proventos dezenas de vezes superiores aos do cidadão comum.
Nessa perspectiva, um dos aspectos que chamam atenção no Legislativo é sua capacidade de, em nome da manutenção de privilégios, distorcer até mesmo figuras jurídicas internacionalmente consagradas como esteios da democracia. É o caso da imunidade parlamentar, invocada por Roberto Jefferson para tentar reverter sua cassação. Ao agir dessa forma, o ex-deputado se utiliza de um conceito criado para garantir a liberdade de expressão e voto do Parlamento com o intuito de reivindicar a mais despudorada impunidade. Na Inglaterra de 1689, a imunidade parlamentar foi consagrada na Bill of Rights (Declaração de Direitos), um conjunto de princípios que fez frente ao autoritarismo monárquico e lançou a pedra fundamental das democracias modernas. A imunidade é uma forma de assegurar o exercício pleno da atividade política, adotada por todos os países democráticos. Alguns países, entre eles o Brasil, estenderam essa figura a crimes comuns, o que transforma a imunidade em inadmissível blindagem do Legislativo. Até 2001, quando foi aprovada emenda constitucional restringindo a imunidade nesses casos, o Congresso serviu de refúgio a criminosos da laia de Hildebrando Pascoal, aquele da motosserra. Mesmo depois dessa mudança, o Brasil continua a fazer parte de um grupo de países que tratam os parlamentares como cidadãos especiais. Não é mais necessário que o Legislativo dê licença ao Judiciário para processar um de seus integrantes, mas a Câmara ou o Senado podem interromper o andamento do processo. Na Inglaterra, na França, nos Estados Unidos, a proteção existe apenas contra os crimes de opinião (veja quadro). Fora isso, o parlamentar pode ser processado como qualquer outro cidadão.
No clássico Raízes do Brasil, o historiador Sérgio Buarque de Holanda descreve a democracia brasileira como uma adaptação tosca das idéias libertárias européias pela elite local. "Uma aristocracia rural e semifeudal importou-a e tratou de acomodá-la, onde fosse possível, aos seus direitos ou privilégios, os mesmos privilégios que tinham sido, no Velho Mundo, o alvo da luta da burguesia contra os aristocratas", escreveu. No Brasil de hoje, o que se vê é um pastiche contemporâneo desse arranjo: representantes de um partido fundado como de esquerda agarrados a privilégios "da elite" que sempre disseram combater. "São características de um poder historicamente fraco e pouco representativo devido à tradição autoritária do Brasil", analisa o cientista político João Paulo Peixoto, professor de política e administração pública da Universidade de Brasília.
Com efeito, a história política brasileira é de uma enorme concentração de poder no Executivo. O país teve seis constituições antes da atual, de 1988. Dessas, três foram outorgadas – inclusive a primeira, de 1824, feita depois que o imperador dom Pedro I dissolveu a Assembléia Constituinte que redigiria a primeira Carta Magna do Brasil independente. O senador Marco Maciel, do PFL pernambucano, lembra que já em 1916 o escritor e ensaísta sergipano Gilberto Amado apontava a existência de uma separação entre as instituições políticas e a sociedade brasileira. Maciel pondera, no entanto, que, com todos os percalços, a democracia brasileira avançou e se consolidou. E mais: "A correção ética no trato da coisa pública passou a ser uma exigência nacional", diz. Com isso, embora sobrem motivos para indignação com o tamanho do escândalo que se descortinou no país nos últimos quatro meses, é vital persistir nos avanços. Entre eles, o fim da imunidade parlamentar para crimes comuns é um passo necessário para acabar com uma distorção que se tornou fonte de privilégios, impunidade e atraso.