É possível que ao longo das próximas décadas a grande crise ético-política que o País atravessa fique marcada, entre outras coisas, por algo estranhável e inédito: a tentativa de minimização de culpas, pela via da deturpação (ou "criação") de conceitos, por parte dos que dela emergem indelevelmente maculados. Procura-se, por exemplo, transformar em simples erros o que, notoriamente, são crimes a punir; para tanto, inventam-se conceitos como "créditos não contabilizados" para explicar "dinheiro sujo"; ou se inventa a anódina expressão "responsabilidade política" como se esta pudesse substituir responsabilidades concretas, de maiores conseqüências, tais como as de natureza legal, administrativa ou penal. O deputado e ex-ministro José Dirceu instituiu como "prato de resistência", na defesa de seu mandato parlamentar, o argumento da distribuição de culpas. Disse ele (em entrevista à Folha de domingo): "Parece que eu fui presidente do PT sete anos sozinho, secretário-geral cinco anos sozinho, né? O PT não foi construído assim. Tem dezenas de dirigentes importantes que hoje são prefeitos, governadores, ministros, deputados e senadores, que participaram de toda essa estratégia comigo." Ora, ninguém jamais duvidou disso. Apesar de o País inteiro reconhecer a importância da liderança de José Dirceu na conquista que Lula e o PT fizeram do Poder - especialmente na montagem de alianças partidárias que levaram à vitória nas urnas presidenciais, depois de três tentativas frustradas -, é claro que dessa estratégia José Dirceu não foi, nem poderia ter sido, o único operador. O de que se duvida é justamente do contrário, ou seja, de que, como presidente e secretário do partido por tantos anos, assim como na qualidade de todo-poderoso ministro de Lula, não tenha mais do que "responsabilidade política" por toda essa estratégia de compra de poder político desnudada pelas CPIs, Polícia Federal e Ministério Público. Nessa distribuição de culpas o deputado não deixou de incluir o presidente Lula - no que, aliás, foi coerente, pois sempre disse que o presidente da República "sabia de tudo", embora ressalvando agora, ao que parece sem faltar à verdade, que a sua foi meramente uma "responsabilidade política". Em termos éticos a responsabilidade de José Dirceu se revela de forma até curiosa, quando a certa altura da mencionada entrevista revela: "Eu sempre disse ao presidente que o governo não podia perder a maioria na Câmara e no Senado. Que perder a maioria seria caminho para CPI e que CPI é caminho para tentar desestabilizar e inviabilizar governo." Não se duvide da sinceridade destas palavras, especialmente por virem de quem sabia dos riscos que correria, com CPIs, um governo que jurava "não roubar nem deixar roubar"... Ao negar a existência do mensalão, apesar de admitir a "ilegalidade" do caixa 2 para financiamento partidário, e ao insistir em apontar os empréstimos bancários como origem de toda a colossal dinheirama de origem escusa, circulada entre entidades, partidos e pessoas públicas, o deputado Dirceu se coloca contra os indícios mais evidentes que têm surgido nas CPIs, com seu vasto estoque de documentos e depoimentos, assim como de investigações da Polícia Federal e do Ministério Público, todos no sentido de apontar tais recursos como provenientes de desvio de dinheiro público, por meio de superfaturamento, licitações fraudulentas e outros mecanismos de arrecadação, via corrupção. Às vezes José Dirceu demonstra desprezo pela lógica, como se, por conveniência, fosse possível admitir a culpa só dos que são corrompidos, e não a dos que corrompem. Por exemplo, ele diz: "Os partidos (PL, PP e PTB) assumiram que receberam dinheiro. Mas isso não quer dizer que o governo é corrupto e que o PT é corrupto." Não quereria dizer isso, de fato, se houvesse uma outra entidade indefinível, inefável - que não o governo ou o PT - que, por alguma razão misteriosa, pretendesse abastecer, generosamente, partidos políticos, com dinheiro "não contabilizado"... De qualquer forma, aquele que foi, pelo menos, o segundo dirigente petista mais importante (admitindo-se que Lula tenha sido o primeiro) não deixa de fazer sua confissão de culpa ao dizer: "Esse é um erro e o PT vai pagar por ele. Nós vamos ter que pedir desculpas ao País." Tudo bem, desde que o deputado tenha consciência de que, nesse assunto escabroso, além de erro há crime, além de correção tem que haver punição - e aí desculpas ao País não bastam.
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Entrevista:O Estado inteligente
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terça-feira, setembro 27, 2005
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