Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 17, 2005

O último show de Severino

veja

Acuado pela pujança das provas do
mensalinho, o deputado protagoniza
um espetáculo de versões insustentáveis


Alexandre Oltramari


Fotos, Edilson Rodrigues/CB, Valter Campanato e reprodução

NEM O FILHO MORTO ESCAPOU DA LAMBANÇA
Severino Cavalcanti, que está de saída do cargo e do mandato, e a secretária Gabriela Martins, que foi convencida a contar que o cheque da propina de 7 500 reais era, na realidade, uma contribuição financeira à campanha eleitoral do filho de Severino, morto em agosto de 2002: por essa ninguém esperava, mas o deputado achou melhor jogar a culpa na conta do filho já falecido

Há duas características notáveis no escândalo do mensalinho de Severino Cavalcanti. A primeira está na pujança de indícios e provas mostrando que o empresário Sebastião Buani, concessionário de um restaurante na Câmara, tinha uma clandestina relação financeira com o deputado. Está cabalmente provado que Buani pagou 40.000 reais para prorrogar a concessão do seu restaurante até janeiro de 2005. Já aparecera o documento prorrogando a concessão, com data de 4 de abril de 2002 e a assinatura de Severino. Na semana passada, apareceu o extrato bancário de Buani, mostrando um saque de 40.000 reais no mesmo dia 4 de abril de 2002. Não falta mais nada. No caso do mensalinho de 10.000 reais, também não há mais zonas de sombras. Buani vinha tentando provar que pelo menos um mensalinho fora pago por meio de cheque e descontado na boca do caixa por um motorista de Severino. Na semana passada, apareceu o cheque, de 7 500 reais, com data de 30 de julho de 2002. O endosso não era do motorista, mas de Gabriela Kênia dos Santos da Silva Martins, uma das secretárias de Severino – a mesma que, em depoimento anterior à polícia, negara ter recebido qualquer quantia de Buani. Caso encerrado.

A outra característica marcante é decorrência da abundância de provas: os insustentáveis malabarismos de Severino para mostrar que tudo é "mentira, mentira, mentira", como ele mesmo disse, num de seus saltos triplos sobre a verdade. Para esquivar-se do cheque endossado por sua secretária, a prova mais cabal do pagamento de propina, Severino rompeu os limites da decência num plano que ninguém imaginara: jogou a culpa no filho morto. Disse que o cheque fora uma contribuição à campanha de seu filho, que morreu num acidente de carro pouco antes da eleição de outubro de 2002, na qual concorria a uma cadeira de deputado estadual em Pernambuco. A prestação de contas da campanha de Severino Cavalcanti Júnior à Justiça Eleitoral informa que houve apenas uma doação, de 1 000 reais, e feita pelo próprio candidato. Ou seja: para livrar-se da acusação, Severino, o vivo, denunciou o caixa dois de campanha de Severino, o morto – o que, além de tudo, não resolve nada, pois a tal contribuição em cheque pode muito bem ter sido resultado das propinagens de Severino, o vivo.

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Fotos Dida Sampaio/AE, reprodução Edi Ferreira/AE
O EXTRATO DOS 40 000 REAIS
O empresário Sebastião Buani e a cópia do seu extrato bancário em abril de 2002, onde aparece o saque de 40 000 reais: prova cabal

A versão foi cuidadosamente discutida com a secretária Gabriela Martins, numa reunião de sete horas na casa oficial de Severino, da qual saiu convencida a contar a novidade num novo depoimento à Polícia Federal. O ex-prefeito Paulo Maluf e seu filho Flávio estão presos em São Paulo desde o dia 10 de setembro, sob a acusação de tentar orientar o depoimento de um réu, o doleiro Vivaldo Alves, o "Birigüi", que revelou detalhes da roubalheira monumental de Maluf na prefeitura de São Paulo. Os Maluf estão presos por "coação de testemunha" e "tentativa de obstrução da Justiça" – mais ou menos o que Severino fez com sua secretária durante sete horas na residência oficial da Câmara. Antes, Severino fizera uma tremenda lambança para livrar-se de outra prova, o documento da concessão. Deu versões contraditórias. Disse que o documento não existia. Que o documento existia, mas não tinha sua assinatura. Que se tivesse sua assinatura é porque assinara sem ler... Por fim, anunciou que um perito descobrira que o documento era "montado eletronicamente", mas escondeu que o próprio perito, Adamastor Nunes de Oliveira, ressalvara que seu laudo não era conclusivo.

A fartura de provas, aliada aos desmentidos patéticos de Severino, acabou por dar nitidez ao caso, mas nem sempre foi assim. Quando VEJA chegou às bancas com a capa "O 'mensalinho' de Severino", nem todo mundo entendeu a seriedade do assunto – por conveniência ou por miopia. Os petistas do mensalão, empenhados em preservar Severino do naufrágio, fizeram todo tipo de reparo à denúncia. Até alguns colunistas de jornal, nesse caso por miopia mesmo, passaram a desprezar todas as evidências e provas do caso – provas testemunhais, circunstanciais, indiciárias – para exigir uma suposta prova material. Deixaram-se levar por um surto pombalino, talvez querendo que a propina fosse demonstrada com um recibo de pagamento, com assinatura dos corruptos, data e carimbo – ora, pois. Nem todos, é claro, caíram na esparrela. Certeira, a colunista Dora Kramer, do jornal O Estado de S. Paulo, esteve entre as primeiras vozes na imprensa a perceber o que acontecia e, logo nos primórdios do escândalo, convidou Severino a "apresentar escusas gerais e retornar à João Alfredo natal". É o que Severino deve fazer nas próximas horas, sem as escusas.


Vidal Cavalcanti/AE
MALUF NA CADEIA, SEVERINO EM CASA
Maluf, ao ser preso sob a acusação de coagir o doleiro que sabe de tudo: como Severino

A imprensa está no olho do Katrina da crise justamente porque tudo começou a partir do trabalho jornalístico. A origem do transe que paralisa Brasília é a divulgação do vídeo da corrupção nos Correios, que motivou as denúncias gravíssimas de Roberto Jefferson, que puseram o carrossel da corrupção a rodar numa velocidade estonteante. Por isso mesmo, é fundamental compreender as limitações do trabalho jornalístico. A imprensa, ao contrário da polícia, não pode obrigar uma testemunha a prestar depoimento. A imprensa também não faz operações de busca e apreensão de documento, como o Ministério Público costuma fazer quando precisa obter uma prova. A imprensa também não tem poderes para quebrar sigilo bancário, telefônico ou fiscal de quem quer que seja. São prerrogativas exclusivas da Justiça e das comissões parlamentares de inquérito. O trabalho da imprensa, portanto, não é pluripotente. No caso do mensalinho de Severino, VEJA publicou, já na estréia do escândalo, tudo o que era jornalisticamente possível – tanto que, passadas duas semanas, o caso não teve avanço algum a partir da investigação jornalística.

Como é recorrente nas ocasiões em que a imprensa assume o centro do palco, VEJA chegou a ser acusada até de comprar informação sobre o caso do mensalinho. Em Nova York, no feriado de 7 de Setembro, animado com o desmentido feito dois dias antes por Buani de que não pagara propina alguma, Severino acusou a revista. "Houve leilão entre as revistas e VEJA comprou denúncias falsas", disse. VEJA não paga por informação. A fonte da revista foi o então gerente financeiro de Buani, Izeilton Carvalho, que não recebeu um único tostão de VEJA para contar tudo o que sabia. Izeilton Carvalho, de fato, ofereceu a mesma história a outras publicações semanais e, no caso de uma delas, mandou um e-mail em que foi explícito no seu convite para "negociar" as informações que detinha. O fato de ter escolhido dar seu depoimento a VEJA – mesmo sem receber nenhum tostão em troca – talvez explique um pouco a excelência do trabalho jornalístico que a revista sempre busca.

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