"Como vamos fazer uma operação 'mãos limpas' se as mãos da classe média estão sujas? Se tivermos uma operação mãos limpas, as nossas elites deverão ser as primeiras a entrar na faxina"
Estava sozinho na minha mesa da pizzaria. Inevitavelmente, bisbilhotava as conversas da família na mesa ao lado. Estavam indignados com o mensalão e outras manifestações de corrupção e desonestidade da nossa classe política.
A conversa mudou. O médico e professor narrava um episódio em que discutira com um amigo ou parente acerca de um atestado médico para justificar faltas ao trabalho. Deu um por três dias, mas a pessoa queria para a semana toda. O atestado afirmava que o paciente tinha um caso de conjuntivite. Para dar mais credibilidade, receitou também um colírio, mas advertiu que não era para usar, já que não tinha nada no olho.
Ilustração Ale Setti |
A conversa saltou da indignação, diante das estripulias do PT, para o riso, no caso do atestado. Não parece haver ocorrido a nenhum dos presentes que tanto o escândalo do mensalão quanto o atestado falso são casos claros de roubo. Quem recebe o atestado está roubando dinheiro da empresa, e quem o dá é cúmplice do roubo. Não é menos que isso, não é menos roubo. Não é o roubo in extremis, para sobrevivência, o único perdoável. Ali eram todos de classe média.
A cola é roubo de conhecimento, para passar sem saber, isto é, enganar o sistema de controle de qualidade da escola. Quem cola está fraudando a meritocracia da escola, em que a nota é a recompensa pelo esforço de estudar e aprender.
Professor que não dá aula na hora em que deveria dar está roubando tempo do Estado e do aluno, pois tempo é o que compra o seu salário. Professor de tempo integral na universidade pública que não cumpre seu horário de permanência está roubando dinheiro (= tempo) do erário público. O que faz esse mesmo professor quando a sua empregada não cumpre seus horários?
Quando o pivete rouba a bolsa da nobre senhora é crime sem perdão. Quando a empregada leva a comida da casa da patroa é fraqueza de caráter dos pobres. Mas não se fala em roubo quando a madame ou seu marido deixam de pagar os impostos devidos, subornam o guarda para não pagar multa, fazem contrabando ou subfaturam compras. É como se roubar do Estado não fosse crime (mas o próprio Estado induz à sonegação, criando impostos que levariam à falência muitas empresas pequenas, se elas fossem pagá-los).
Como vamos fazer uma operação "mãos limpas" se as mãos da classe média estão sujas e ela não vê a diferença entre atestado falso, roubo de tempo, superfaturamento e desfalques em estatais? Quando são os pobres ou os ilustres parlamentares, é crime. Quando é o cidadão ou sua família, é o jeitinho, é a vitória da astúcia sobre o sistema. Se tivermos uma operação mãos limpas, as nossas elites deverão ser as primeiras a entrar na faxina.
Além do desencanto e revolta, de extraordinária importância, há pelo menos dois resultados pouco auspiciosos desse relativismo moral. Na operação da economia, é preciso desviar enormes recursos para controlar e fiscalizar. São recursos que poderiam gerar riquezas, mas que são usados para impedir que um roube do outro. Como entenderam os países protestantes (que têm os menores níveis de corrupção), honestidade vira riqueza.
Outra conseqüência péssima é que as regras de funcionamento do serviço público se tornam restritivas e travadas, na vã tentativa de impedir a malversação de recursos e os desfalques. As proteções são frágeis e facilmente contornadas pelos pilantras. Mas, na ânsia de proteger os cofres públicos de uns poucos desonestos, acabam por impedir a máquina governamental de cumprir seu papel. Qualquer administrador público em Brasília sabe muito bem: ou se arrisca, operando na margem da legalidade, ou quase nada poderá fazer.
Uma loja de departamentos americana muito bem-sucedida – a Nordstrom – distribui aos funcionários um cartão com seu código de conduta para todos os assuntos da empresa. O texto é breve: "Em caso de dúvida, use o bom senso". Pena que o nosso serviço público não possa receber um tal cartão, pois os regulamentos impedem o uso do bom senso.