Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, setembro 29, 2005

Raça, segundo são João Jorge Bornhausen

 Folha de São Paulo

A pergunta veio anônima, do auditório - claramente, de alguém que precisava de um sinal de esperança.

"O senhor não está desencantado com tudo isso que acontece no Brasil?"

"Desencantado? Pelo contrário. Estou é encantado, porque estaremos livres dessa raça pelos próximos 30 anos."

Surpreendi-me eu mesmo por ter respondido de bate-pronto. Quem me acompanha sabe que não costumo reagir precipitadamente a provocações. Mas fiquei satisfeito por ter dado aquela resposta, embora reconheça possível exagero. Trinta anos foi pura explosão de otimismo. Eu sei que a democracia adota limites humanos, e o humano abrevia as penas, esquece, compreende as contingências das quedas, oferece novas chances.

Além do mais, o petismo é representativo de parcela respeitável da sociedade. Livre dos fariseus, a camarilha que o arrastou ao atoleiro, bem que pode se recuperar mais cedo. Desde que não insistam em destilar o veneno com que abriram o caminho ao poder, insultando, difamando, fingindo a indignação moralista que jamais tiveram.

Minha profecia otimista de que ficaríamos por 30 anos livres desses malfeitores da política teve espantosa repercussão. Foi a "frase do dia" nos jornais, na rádio e na TV. Mas as reclamações não vieram por causa da previsão da quarentena, de que já estava disposto a me penitenciar.

Embora a carapuça que joguei lhes fosse rigorosamente ajustada, os tais indesejáveis que nos envergonham pelos atos que as CPIs estão devassando escolheram outra forma de reclamação. Passando por vítimas, acusam-me de reacionarismo explícito, de ter profetizado um castigo de 30 anos não para eles, mas para as esquerdas em geral.

Grandes malandros, querem se confundir com o pensamento socialista brasileiro!

Ora, os setores de maior representatividade da esquerda brasileira já estão na oposição. Desenganaram-se a tempo, antes que fossem conspurcados pela lambança. Ou aparece alguém para negar representatividade ao PDT, de Brizola? Sou testemunha pessoal, porque ouvi dele próprio o seu desencanto. Ou também o PPS, liderado pelo deputado Roberto Freire, não representa a esquerda? Ou há dúvida sobre a autenticidade do emblemático deputado Gabeira? Ou os petistas ideológicos expulsos do partido por cobrarem coerência e honestidade, insurgindo-se contra o grupo, camarilha ou raça -o sinônimo que escolhi- não são esquerda?

Se não atingi toda essa gente, como teria visado as esquerdas quando me referi à camarilha petista?

Neste momento, neste pais, são conhecidos e notórios os políticos inescrupulosos a quem visei. Os políticos inescrupulosos de quem se fala, todo mundo os identifica pelo nome, profissão, endereços, fortunas recebidas, CPF, RG e até cacoetes.

Quanto a ter usado a palavra "raça" - não como designação preconceituosa de etnia, ideologia, religião, caracteres, mas como camarilha, quadrilha, grupo localizado -, tão logo alguns falsos intelectuais surgiram, incriminando-me, apareceram preciosos testemunhos a meu favor.

Confesso que falei "dessa raça" espontaneamente, sem premeditação, usando meu modesto universo vocabular, a linguagem coloquial brasileira com que me expresso, embora meus adversários tentem me isolar numa aristocracia fantasiosa. Aliás, pelo menos em matéria de falar "o português do Brasil", "a língua errada do povo, a língua certa do povo" -como o poeta Manuel Bandeira sabia das coisas!- , peço licença pela imodéstia, mas usei a palavra "raça" na melhor acepção.

Mas gostei das abonações que meus amigos trouxeram. Sempre me encantou, como constante consulente de dicionários, pois a etimologia e a gramática não são o meu forte, a forma como o Aurélio exemplifica o significado das palavras, acompanhando-as com textos de escritores que as empregaram.

Pois eis-me cercado de abonações. Primeiro, o sábio Antenor Nascentes, no seu delicioso "Tesouro da fraseologia brasileira", que teve uma reedição nos anos 1980, pela editora Nova Fronteira. Segundo Antenor Nascentes, a prosa popular brasileira emprega a palavra raça no sentido como a usei, no sentido de "gente perversa".

O melhor, porém, é a origem histórica desse uso da palavra. Outro amigo veio me abrir o Novo Testamento, no Evangelho de Mateus, capítulo 3º, versículos de três a dez. É um registro de são João Batista chamando de "raça de víboras" aos "fariseus e saduceus", que, desconfio, deviam ser a camarilha corrupta da época, oportunistas e que pretendiam ser melhores que os outros. Raça de víboras. E bote víboras nisso.

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