Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 24, 2005

André Petry Pior que chimpanzé?

VEJA

"É perturbadora a impressão de que
a Justiça examina com mais rigor
(e generosidade) uma medida que
beneficia uma chimpanzé do que uma
que beneficia um ser humano"

Há uma semana, neste mesmo espaço, contou-se a vergonhosa história de quatro brasileiras, três negras e uma branca, que estão (ou foram) presas por tentativa de furtar coisas insignificantes – uma ducha elétrica de 19 reais, três pacotes de fraldas de 13,80 reais, e assim por diante. Rosimeire Rosa de Jesus, 33 anos, é uma dessas brasileiras. Ela tentou furtar a ducha elétrica e está presa desde o dia 20 de agosto do ano passado. O que chama atenção – e faz com que o assunto volte a aparecer nesta coluna – é que a Justiça negou um pedido de habeas corpus para Rosimeire. Isso quer dizer que, diante do pedido para que fosse posta em liberdade, em nome do princípio da insignificância de seu crime, a Justiça entendeu que não. Que Rosimeire tinha de ficar presa. A Justiça não pediu tempo para pensar. Não deu liminar antes de julgar o mérito. Não titubeou. Negou a liberdade e pronto, na certeza de que fazer o contrário era uma injustiça.

E eis que um juiz de Salvador acaba de pedir mais tempo para analisar um pedido de habeas corpus. O pedido foi apresentado pela área do meio ambiente do Ministério Público da Bahia em favor da libertação imediata de "Suíça", uma chimpanzé. Suíça mora há dez anos numa jaula do zoológico da capital baiana e, segundo seus defensores, anda deprimida. O promotor que assina o pedido de habeas corpus alega que, pelo fato de Suíça ser geneticamente o primata mais próximo do homem (nossos genes são 99,6% idênticos), ela não pode ficar enjaulada e precisa receber um tratamento, digamos, mais humano. A idéia é que seja libertada e transferida para Sorocaba, no interior de São Paulo, onde há um santuário de chimpanzés. O juiz do caso negou o pedido de liminar, mas pediu mais tempo para julgar o mérito da questão. Quer conhecer melhor as condições da jaula em que vive Suíça, quer obter detalhes sobre o tipo de tratamento que o bicho recebe no zoológico para então decidir, definitivamente, se lhe dá ou não a liberdade pedida.

O juiz age com o profissionalismo que dele se espera. O promotor baiano, que cuida de meio ambiente, também faz o que dele se espera – tentando validar seus pontos de vista no foro adequado. E o resultado disso tudo, caso o habeas corpus acabe sendo concedido, pode ser algo inédito no país: será a primeira vez que a Justiça fará uso de uma lei dos homens para beneficiar um animal. Só o fato de o juiz aceitar analisar o pedido de habeas corpus já significa que entendeu ser legítima a tentativa de proteger um bicho com leis feitas para proteger seres humanos.

Ninguém há de se opor ao fato de que bichos venham a ser beneficiados com as leis dos homens, ainda que isso esteja longe, muito longe, de ser prioridade nacional para uma Justiça lenta e burocratizada como a nossa. Mas é, aí sim, altamente perturbadora a impressão de que a Justiça examina com mais rigor – e mais generosidade – uma medida que beneficia uma chimpanzé do que uma medida capaz de beneficiar um ser humano. Rosimeire, por exemplo. Ou qualquer um dos muitos brasileiros que cumprem pena por cometer crimes de bagatela. Ou que já cumpriram sua pena e ainda estão atrás das grades. Ou que vivem em jaulas às quais se convencionou chamar de celas.

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