Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 24, 2005

Augusto de Franco, A crise está apenas começando



 Especial para e-Agora (23/09/05)

A despeito do governo estar querendo vender a idéia de que a crise política entrou na sua "reta final", ela está apenas começando.

Como escrevi, na Folha de São Paulo, em 11 de agosto, no artigo "Salvando o governo do naufrágio", Lula continua no comando do governo enquanto é mantido pelas oposições. Se depender do PSDB e do PFL, não será removido democraticamente antes do próximo pleito. E é justamente por isso que a crise vai continuar.

Não estamos diante de uma crise moral de indivíduos que sucumbiram diante das tentações do poder. Estamos diante da crise de um pensamento – e de uma prática coletiva – que imaginou que o caminho para a transformação autocrática que propugnava era assumir o controle da sociedade a partir do Estado por meio da privatização partidária do governo.

De pouco adiantará cassar os mandatos de meia dúzia de capi. Não existe famiglia só de chefes. Onde estão os soldati? Certo, talvez não sejam tantos assim. Mas o problema é que a obra construída, o aparato montado, permanece ainda quase intocada.

Do ponto de vista político, a suposta quadrilha montada no Estado é delito menor. É expediente tático para consecução de um objetivo estratégico. O malfeito mais pernicioso para a democracia e para as instituições republicanas é o sistema que foi organizado, com o auxílio dos recursos ilegais e por meio aparelhamento do governo e das instituições públicas, para a retenção do poder nas mãos de um grupo, falsificando a dinâmica democrática. Sim, estou falando de privatização mesmo, daquele tipo mais perigoso que pode haver e que se assemelha a que o PRI conseguiu praticar no México.

As oposições não entenderam que, a esta altura, pouco importa se Lula está participando ou não das atividades ilegais, se ele é ou não é pessoalmente corrupto. Não tomaram consciência ainda de que sustentar, por ação ou omissão, a permanência de Lula na presidência da República, é mantê-lo também na chefia do esquema que foi montado. E que, ao proceder assim, além de não contribuírem para desmontar esse esquema de poder, só prorrogam a vigência da crise.

Pelo menos no que tange à ocupação organizada do Estado, Lula não apenas sabia de tudo, senão que participava da maior iniciativa de aparelhamento de governo que já foi efetivada em uma democracia contemporânea. Lula sabia, sim, porque nomeou centenas de sindicalistas amigos para postos-chave da administração, das estatais, dos fundos de pensão e das instituições não-estatais financiadas com dinheiro público.

Algumas coisas mais escabrosas Lula talvez não soubesse em detalhes, já que delegou a operação ao seu "capitão do time" e, ao que se diz, também a Gushiken. Por avidez, cupidez ou pura incompetência, tais auxiliares montaram seus próprios esquemas e, como estamos vendo, erraram a mão.

Quando tudo começou a dar errado, Lula, para se salvar, foi obrigado a se desvencilhar desses esquemas. Mas isso foi mais "para inglês ver".

As evidências falam por si. O esquemão básico, que visa à reeleição, continua montado. O Estado está sendo vergonhosamente usado para "melar" as investigações, para proteger os acusados e, inclusive, para instruir os depoentes nas CPIs. Eles não apenas apresentam as mesmas versões, senão que – instruídos por uma espécie de consigliere oficial – empregam até as mesmas palavras.

Nenhum dos réus confessos, como Delúbio e Silvinho, foram sequer punidos pelo PT. Não será porque não fizeram nada de errado aos olhos da verdadeira direção do partido (da qual participam, até hoje, Lula e Dirceu)? Não será porque, se houver punição, podem abrir o bico? Pelo mesmo motivo, até o Waldomiro, filmado em ato de extorsão, saiu a pedido e continua impune.

Lula disse que foi traído mas não pode nem dizer quem o traiu. Não será porque isso envolve o risco dos "traidores", uma vez denunciados, darem com a língua nos dentes?

Se Lula se recusa a responder à nação sobre tudo isso, está fugindo de sua responsabilidade como principal mandatário. Pode até permanecer na presidência, por conveniências eleitorais da oposição, mas – embora ainda tenha popularidade – não tem mais legitimidade. Se não dá mostras de que vai mudar de comportamento, não poderia ficar na presidência nem mais um dia sequer. É o óbvio.

Como, mesmo assim, as oposições vão tentar manter Lula até o final do seu mandato, teremos muita crise pela frente, mais uns quatrocentos dias de agonia. Ao contrário do que diz o governo, estamos, portanto, na reta inicial da crise, ainda no primeiro quarto dos cem metros rasos que nos separam do início da próxima campanha eleitoral.

Mas se, ao contrário do que se prevê aqui, a crise fenecer, aumentarão muito as chances de Lula ser reeleito. A conclusão também é óbvia. Ao exagerarem no seu calculismo eleitoreiro as oposições caíram numa armadilha: ou ficarão impotentes, resignando-se a apostar na "loteria dos fatos" ou, ao invés de contribuírem para resolver a crise, ficarão condenadas a alimentá-la.

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