Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 17, 2005

Por que o PT afundou?

veja
Da utopia ao caos

Como o PT forjou sua derrocada: do
nascimento apoiado no equivoco socialista
e no mito do líder operário ao esfacelamento
de seu patrimônio ético e à chegada ao
banco dos réus


Marcelo Carneiro e Juliana Linhares

 

Joedson Alves/AE
ONTEM, HOJE
Luiz Gushiken, Luiz Inácio Lula da Silva e José Dirceu, em foto de 1984; acima, os três pouco antes da eclosão da crise


NESTA REPORTAGEM
Quadro: Os 120 dias que abalaram o PT
Quadro: Os "antitudo"
Quadro: Do sonho ao pesadelo

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Em Dia: O PT no poder

O Partido dos Trabalhadores elege neste domingo o grupo que irá determinar os rumos da agremiação nos próximos cinco anos (se é que o PT durará tanto). Da disputa – da qual sairão os nomes dos presidentes dos diretórios nacional, estadual e municipal – participam, além do candidato do Campo Majoritário, o grupo liderado pelo ex-ministro José Dirceu que tenta se manter no poder, nove correntes da esquerda do partido. A última eleição desse tipo no PT ocorreu em 2000. Naquele ano, vencê-la significava conquistar o controle de uma formidável máquina partidária com 1 milhão de filiados e um caixa azul como céu de brigadeiro. O PT tinha então 187 prefeituras, reputação de "partido ético" e chances reais de conquistar pela primeira vez a Presidência da República. Hoje, a situação é bem diferente. A dívida oficial da legenda é de 20 milhões de reais, seus principais dirigentes estão sentados no banco dos réus das CPIs, ameaçados de cassação, e as perspectivas para as eleições de 2006 são, na mais otimista das hipóteses, dramáticas. A cientista política Lúcia Hipólito estima que as bancadas do partido na Câmara dos Deputados e nas assembléias legislativas dos estados devam minguar em, pelo menos, um terço.

À chapa vencedora das eleições deste domingo, portanto, restará pouco mais do que a melancólica missão de administrar uma massa falida.

Na semana passada, sete petistas – incluindo José Dirceu e o ex-presidente da Câmara João Paulo Cunha – conseguiram fazer com que o Supremo Tribunal Federal (STF) lhes concedesse liminar impedindo temporariamente a abertura de seus processos de cassação. O episódio – somado à resistência do partido em apoiar o pedido de cassação do presidente da Câmara, Severino Cavalcanti (ver O último show de Severino) mais a inacreditável manutenção do ex-tesoureiro Delúbio Soares nos quadros da legenda – dá mostras de que os dirigentes petistas já abandonaram a luta no terreno político para dedicar-se à exclusiva missão de salvar a própria pele – e a dos aliados que puderem lhes garantir alguma sobrevida. A ruína do PT deu-se em tempo recorde. Foram necessários apenas 100 dias para que uma alucinante sucessão de revelações fizesse com que o partido fosse soterrado pelos escombros do seu patrimônio ético Uma edificação não vai ao chão em tão pouco tempo a menos que seus alicerces estejam podres. É o caso do PT.

O partido padece de um erro de origem: nasceu assentado sobre dois equívocos. O primeiro foi ter sido criado sob o signo do socialismo quando a idéia já seguia em franca decadência no restante do planeta. Dois anos antes da fundação do PT, em 1980, a China já havia iniciado o processo de descoletivização da sua agricultura. Começara a estimular a entrada de capital e tecnologia estrangeiros e a instalação de multinacionais no país. Em 1985, o então presidente russo Mikhail Gorbachev dava início à perestroika (o processo de abertura da economia soviética) e, em 1989, o Muro de Berlim caía, revelando ao mundo o assalto ao Estado protagonizado pelos partidos comunistas do Leste Europeu e fazendo desabar com ele a utopia marxista. Enquanto isso, o PT, recém-criado, divulgava manifestos pregando a "solidariedade à luta de todas as massas oprimidas do mundo" e aos "explorados pelo capitalismo". Do ponto de vista ideológico, portanto, o PT já nasceu póstumo. "Ele foi no contrafluxo da esquerda", reconhece Roberto Schwarz, crítico literário e um dos primeiros intelectuais a apoiar a legenda, à qual ainda é filiado.

Celso Junior/AE
QUEM DIRIA
Do senador Pedro Simon para José Genoíno, no banco dos réus da CPI: "Nunca imaginei ver o senhor aí"


O segundo equívoco do PT decorre do primeiro. O partido foi formado por uma mixórdia: sindicalistas, militantes egressos da luta armada, integrantes da esquerda católica e intelectuais marxistas. Este último segmento, sobretudo, encarregou-se de construir um mito – o de que o então presidente do Sindicato dos Metalúrgicos de São Bernardo do Campo, Luiz Inácio Lula da Silva, era o guia excelso da classe trabalhadora rumo ao paraíso socialista. Ora, Lula nunca foi socialista. Não se pode nem mesmo dizer que era "de esquerda". Lula era, sim, um líder sindical forjado no pragmatismo das brigas salariais entre operários e empresários – como ele mesmo deixou claro em um histórico debate travado com um deputado em 1982.

Quando um parlamentar perguntou se ele era "comunista, socialista ou o quê", Lula respondeu: "Sou torneiro mecânico". Movido pela ambição pessoal, Lula – numa perfeita simbiose com os intelectuais que viam nele a figura do "líder operário puro" – embarcou gostosamente na aventura leninista. "Os intelectuais achavam que Lula seria um tapete mágico capaz de levá-los à revolução. Já Lula via nos acadêmicos outro tipo de tapete, aquele que poderia ajudá-lo a chegar ao poder", diz o sociólogo Leôncio Martins Rodrigues. Hoje, passados 25 anos, já se sabe qual dos tapetes chegou ao destino traçado. Os intelectuais ficaram para trás – a maioria por decisão voluntária, fruto da percepção da realidade. Há, claro, exceções. Na semana passada, a filósofa Marilena Chaui, uma das principais ideólogas do PT, rompeu, da pior maneira possível, o silêncio obsequioso que vinha mantendo até então, a pretexto de "entender a crise". A filósofa declarou ter "descoberto" o motivo pelo qual se tem "tanto ódio ao PT". "Eu sei hoje por quê: é porque nós fomos o principal construtor da democracia neste país. E não seremos perdoados por isso nunca", declarou. Encerrou seu discurso com o grito de "no pasarán!", a palavra de ordem celebrizada por Dolores Ibárruri Gómez, líder dos comunistas espanhóis que ficou conhecida como "La Pasionaria". Não há, para os que têm na razão e no pensamento a matéria-prima de seu trabalho (como é o caso da filósofa), nada mais deletério do que se deixar levar pela paixão cega. Ao incorrer nesse erro, Marilena Chaui abre mão do título de pensadora para se tornar uma séria candidata à vaga de Velhinha de Taubaté, a personagem recentemente "assassinada" pelo escritor Luis Fernando Verissimo. As declarações da professora da USP não foram, porém, de todo inócuas. Serviram, ao menos, para mostrar que, contrariando todas as expectativas, a imensa arrogância de alguns petistas permanece intocada a despeito dos dólares na cueca e mesmo debaixo dos escombros do furacão da história que destroçou suas teses.

Ao atribuir ao PT o mérito pela construção da democracia no Brasil, Marilena Chaui não só comete, na melhor das hipóteses, um evidente exagero como passa por cima do fato de que, para o PT, a democracia sempre teve um valor meramente estratégico: nunca passou de "uma concessão ao regime burguês" para chegar ao poder. O desprezo pela democracia representativa está no DNA do partido. Foi ele que, em 1986, elegeu dezesseis deputados constituintes para, em seguida, ensaiar um ato de recusa à assinatura da nova Carta. Um documento oficial da agremiação, divulgado na ocasião, justifica assim a recusa (mais tarde trocada por um "voto de protesto"): "O PT, como partido que almeja o socialismo, é por natureza contrário à ordem burguesa, sustentáculo do capitalismo. Disso decorre que ele rejeita a Constituição burguesa que vier a ser promulgada, da mesma forma que a Constituição vigente". Foi também o PT que, pouco antes, em 1985, decidira expulsar de seus quadros três deputados que, contrariando as diretrizes da legenda, participaram do colégio eleitoral que elegeu Tancredo Neves, um dos principais episódios que marcaram o fim da ditadura. Foi também seu mais importante dirigente, Lula, quem deixou escapar o desprezo pelo Legislativo ao chamar o Congresso, em 1993, de "palco de 300 picaretas". Picaretas com os quais, aliás, ele conviveu entre 1987 e 1991, sem jamais esconder seu tédio e sua falta de entusiasmo pela função.

Lula, ao contrário do que tenta demonstrar, tem imensa responsabilidade pela derrocada do partido que ajudou a criar. A ambigüidade com que fez sua estréia na sigla, a manutenção da esquizofrenia ideológica ao longo dos 25 anos de existência da legenda e a nomeação de José Dirceu como líder do apparatchik que proporcionaria aos petistas um reinado de 1.000 anos, para ficar só em alguns exemplos, foram escolhas de ninguém menos do que o próprio Lula. Os resultados são os que hoje se vêem. A adesão meramente tática à democracia se refletiu recentemente nas tentativas de censurar a imprensa, amordaçar o Ministério Público, controlar a produção cultural e impor normas ao pensamento acadêmico. A máquina montada por Dirceu funcionou a serviço do suborno e da corrupção (tudo supostamente "lavado" com o sabão da causa nobre – a perpetuação no poder para o bem do povo) e produziu cenas insólitas como a protagonizada por José Genoíno na semana passada. O ex-presidente do PT foi, nos anos 90, um dos integrantes da tropa formada por parlamentares petistas que cerraram fileiras pelo impeachment de Fernando Collor e pela cassação dos anões do Orçamento. Na terça-feira, o mesmo Genoíno surgiu balbuciando argumentos implausíveis no tribunal em que antes estivera como acusador – situação que lhe rendeu um aparentemente sincero comentário do senador Pedro Simon (PMDB-RS): "Nunca imaginei ver o senhor em uma situação como essa". Por fim, a eterna dicotomia cultivada pelo PT entre os ideais socialistas e o mundo real fez com que o partido deixasse de cumprir aquele que poderia ter sido o seu papel – contribuir para a consolidação de um sistema político em que os rótulos de esquerda e direita não cabem mais. "A idéia de que há um pacote ideológico, representado por essa divisão, que dê respostas a todas as questões não faz sentido no mundo em que vivemos hoje", afirma o filósofo José Arthur Giannotti. "Cada problema tem de ser pensado nos seus próprios termos. E isso dá mais trabalho", diz.

Jefferson Coppola/Folha Imagem
A PASSIONÁRIA DA USP
Para a filósofa Marilena Chaui, a Justiça é uma idéia socialista e o PT atrai ódio porque "construiu a democracia". Faltou discorrer sobre os dólares na cueca

Ao recusar-se a assumir a tarefa de pensar e agir com honestidade, o PT se viu obrigado a seguir o caminho trilhado pelos partidos tradicionais de esquerda que hoje ilustram minguadas páginas dos livros de história como experiências fracassadas. O sociólogo alemão Robert Michels já descrevia esse percurso em 1911, no livro Sociologia dos Partidos Políticos. Segundo Michels, faz parte do código genético dos partidos de esquerda a tendência à burocratização e à formação de uma elite que, no lugar dos velhos anseios socialistas, passa a administrar apenas sua própria sobrevivência política. "O PT repetiu o destino comum a esses partidos: um grupo assume o comando, torna-se hegemônico e toma de assalto o Estado", diz Giannotti. Foi o que aconteceu no México, onde o Partido Revolucionário Institucional (PRI) comandou a política do país por sete décadas até ser banido, no fim dos anos 90, quando a corrupção entre os quadros dirigentes da legenda atingiu níveis escandalosos.

As eleições para o Diretório Nacional do PT, neste domingo, reúnem seis chapas com alguma chance de romper a hegemonia que os bolcheviques (ou Campo Majoritário, em português), o grupo de Dirceu, detêm há dez anos. A julgar pelas propostas apresentadas pelos candidatos até agora (veja quadro na pág. 48), é certo que, não importa o resultado, ele estará longe de significar uma promessa de ressurreição do partido. Se os bolcheviques prevalecerem, o mais provável é que o PT vá a pique num prazo recorde, com a intensificação da debandada nas hostes petistas. Ela já é grande. Desde a eclosão dos escândalos, os sovietes (diretórios, em português) municipais foram definhando de tal forma que hoje, nas cidades com menos de 30.000 habitantes, em vários deles não há quem atenda o telefone nas sedes locais do partido. No caso de uma das correntes de extrema esquerda radical ganhar, o cenário só é um pouco menos desastroso – estima-se que a legenda encolherá de maneira substancial, passando a contar com cerca de 10% a 15% do eleitorado. Não é muito – é uma taxa que quase coincide com a prevalência de outro mal endêmico do Brasil, o analfabetismo (10%). Mas a crise do PT, qualquer que seja o seu desfecho, pode oferecer algo de positivo ao país. Desfeita a idéia de que o petismo, hoje transformado em distopia, representava a única opção política "verdadeiramente virtuosa", o eleitor poderá entender melhor cada problema do país em seus próprios termos – e não como um feixe de questões a ser resolvido mediante a consagração de uma oposição detentora de soluções mágicas. "Não amadureceríamos se não queimássemos as ilusões petistas", diz Giannotti. Nesse sentido, a gangue que tomou de assalto o PT não poderia ter facilitado mais o trabalho.

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