o globo
uem se detiver no exame da situação dos direitos humanos no Brasil verificará que nestes últimos quase três anos de governo tivemos um real retrocesso na sua implementação.
Ainda que poucos, foram importantes os avanços anteriormente obtidos, com a criação da Comissão de Direitos Humanos da Câmara dos Deputados, a realização (dentro de suas atividades) de conferências nacionais sobre o tema com ampla participação da sociedade civil, a instituição de um programa, ao qual sucederam outros mais, de direitos humanos, monitorados por uma Secretaria Especial.
Na área legislativa tivemos o deslocamento da competência das justiças militares das PMs para o julgamento, pela justiça comum, de homicídios dolosos cometidos por milicianos contra civis; a tipificação do crime de tortura, e várias tentativas no objetivo de se dar mais eficiência ao Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, hoje esquecido.
O governo eleito em 2002 deu à Secretaria Nacional de Direitos Humanos o status de ministério, a qual passou a se denominar Secretaria Especial de Direitos Humanos.
Dava-se assim a impressão de que os direitos humanos mereceriam uma atenção destacada por parte da nova administração.
Não foi, entretanto, o que ocorreu. Ausente em momentos emblemáticos diante de violências contra defensores de direitos humanos, indiferente relativamente aos problemas mais cruciais das populações indígenas, como aconteceu com mortes pela fome de crianças em regiões do Estado de Mato Grosso; omisso no trato da questão de segurança pública, permitindo o crescimento da violência policial, do crime organizado e do narcotráfico.
Ora bem, promulgou lei de origem do Executivo, concedendo, em determinadas situações, poder de polícia às forças armadas, cujos membros, praticando homicídios contra civis, deverão ser julgados por tribunais militares, com isso, pondo em discussão a validade da lei que determina a competência da Justiça comum para o julgamento dos crimes de homicídio contra civis praticados por PMs.
E foi mais além, acrescendo a competência das justiças militares das PMs na apreciação de crimes de milicianos e de ações civis de reparação de danos.
Dir-se-á, de outro lado, que se passou a considerar as mais graves violações dos direitos humanos da competência da Justiça Federal, evitando, assim, o corporativismo das instituições estaduais. Além disso, que os tratados de direitos humanos passarão a fazer parte do ordenamento jurídico nacional.
Com relação à chamada federalização dos crimes de direitos humanos, é preciso que se diga que o afunilamento das propostas nesse sentido, na pessoa do procurador-geral da República, entrega a uma só pessoa um poder que melhor estaria nas mãos de entidades da sociedade civil, como a OAB, as organizações sindicais, a ABI e outras mais. A apreciação do pedido pelo STJ é outro equívoco, pois a matéria deveria ser entregue de imediato ao STF para que decidisse prioritariamente. É preciso que se reafirme que, em matéria criminal, não se pode admitir dilações no tempo, sob pena de impunidade.
Dar-se o tratamento de emenda constitucional para a ratificação de tratados de direitos humanos é, pura e simplesmente, procrastinar-se a sua incorporação ao nosso ordenamento jurídico.
Na verdade, o parágrafo 2, do art. 5 da Constituição Federal, ao estabelecer originalmente que "os direitos e garantias expressos nesta Constituição não excluem outros decorrentes do regime e dos princípios por ela adotados, ou dos tratados internacionais em que a República Federativa do Brasil seja parte 'já resolvida' da questão."
Agora se dificulta ainda mais, ou se impede, tendo em vista que o nosso Parlamento é em grande medida conservador, que os tratados de direitos humanos sejam ratificados. Recorde-se que uma emenda constitucional, para ser aprovada, leva, normalmente, um tempo considerável. A maquiagem feita no Poder Judiciário e ainda não completada se delongou por mais de dez anos.
E, uma última pá de cal nos direitos humanos, a Secretaria Especial com status de ministério passou a ser apenas mais uma subsecretaria subordinada ao gabinete do presidente da República.
Se do ponto de vista interno o retrocesso é evidente, o mesmo se pode dizer do ângulo de nossa política externa, onde tanto na OEA como nas Nações Unidas não se ouve a voz do Brasil, a não ser em defesa das violações do Estado. Propostas em sentido inverso não foram, sequer, objeto de considerações.
Resta, pois, que as organizações da sociedade civil tomem em suas mãos pressionar o Executivo, o Legislativo, o Ministério Público e o Poder Judiciário, para que um mínimo se faça na direção da efetivação e proteção dos direitos humanos que, na verdade, como já se proclamou, são o fundamento do Estado Democrático de Direito.
A diplomacia brasileira, na sua maior parte, não considera relevante a pauta dos Direitos Humanos. Competiria, pois, ao governo inverter essa tendência. Mas não o faz, porque também para ele os direitos humanos não permitem ganhos eleitorais. É uma questão pequena na conquista ou na manutenção do poder.
HÉLIO BICUDO foi fundador do Partido dos Trabalhadores, do qual se desfiliou esta semana, e é presidente da Fundação Interamericana de Defesa dos Direitos Humanos.
Entrevista:O Estado inteligente
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