Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 24, 2005

FERNANDO GABEIRA Notas sobre os últimos dias

FOLHA DE S PAULO

No fim de semana, tive a chance de assistir ao filme sobre os últimos dias de Hitler (*). Uma grande produção, com excelentes artistas e uma pesquisa bem fundada, pois se baseia no trabalho do maior especialista em Terceiro Reich: Joachim Fest.
Embora o filme valha por si, estimulou também notas sobre últimos dias de políticos em declínio. É um lugar-comum a negação da realidade diante dos momentos finais. A dificuldade que Hitler teve em encarar a derrota é a mesma que se constata em outros grandes nomes históricos.
No romance "Memórias de Adriano", o personagem reflete sobre o imperador que o antecedeu e constata que ele se recusava a admitir as derrotas, talvez porque se recusasse também a aceitar a morte que se aproximava.
Ao examinar o clima no bunker de Berlim, constatei que esperavam um ataque das tropas nazistas que não aconteceu. Era o fio de esperança que se esgarçava ali, como tantos fios se esgarçaram nas derrotas que conheci: as armas do almirante Aragão no golpe militar de 1964, as urnas do interior em eleições que cobri.
As pessoas se agarram a alguma coisa e parece que, no momento em que desabam, abre-se o caminho para a realidade, embora nem sempre o circuito se complete com tanta facilidade.
Quando a derrota se impõe, quase todos a percebem. Mas uma boa parte aprisiona essa idéia no subconsciente e começa a verdadeira luta. A luta entre os que querem negociar e os que pensam em resistir até o fim.
A negociação pressupõe uma aceitação da derrota. Por isso, talvez, os negociadores sejam assassinados com tanta facilidade. Traição. Os assassinos conseguem, com isso, manter a derrota bem no fundo do inconsciente, pois, de um modo geral, matam no outro o que temem aflorar em si próprios.
Tanto no caso de Hitler, especialmente através das súplicas de Eva Brown, como em outros, a família dos líderes desempenha um papel quase sempre saudável.
A mensagem é esta: existe uma vida conosco, talvez não seja tão gloriosa como a de um líder, mas é uma vida real que precisa ser preservada. Em outras palavras, a família, ainda nesses casos que observei, funciona como um fio de terra.
As tentativas para negar uma derrota real são as mais dramáticas. E, às vezes, prosseguem até depois da rendição. Ou a realidade passa a ser vista com uma ponta de paranóia, como algo inventado pelos inimigos, uma construção falsificada que, momentaneamente, se impõe, ou é preciso construir uma visão em que o adversário esteja nos punindo por nossas qualidades. Nesse quadro, somos absolutamente bons e nossa bondade nos expõe ao ódio.
Essa visão de pagar pela sua bondade, esse martírio, pode ser uma missão divina ou um grande papel que nos reserva a história. Em ambos os casos, desenha-se um quadro em que bons são punidos pelas suas qualidades e a maldade triunfa, ainda que durante um curto espaço de tempo.
O que me interessou nessas notas não foi a busca de uma teoria nem a questão precisa do Brasil agora. O que me interessou, e sei que muita gente detesta esse tipo de esforço, é constatar como os seres humanos, em Roma, em Berlim, no Império, no nazismo ou mesmo em nossos dias, reagem de uma forma semelhante.
Em outras palavras, como os seres humanos se parecem, apesar de ideologias e momentos históricos diferentes. Sem nenhum demérito pela contribuição das ciências sociais, autores como Shakespeare conseguem captar essa centelha humana que atravessa séculos e que nos aproxima tanto dos adversários ao descobrirmos neles a mesma frágil matéria de que somos feitos. Os escritores, mesmo os medíocres, não apenas são forçados a se colocar no lugar do outro. Simplesmente não conseguem evitar essa experiência. É mais forte que eles.
O processo de decadência de Hitler, encerrado no seu bunker, ouvindo conselhos selecionados e rejeitando a dose de realidade que lhe oferecia Eva, é um desses momentos inesquecíveis da reação humana à derrota. Era preciso projetar o fracasso não apenas nos negociadores e nos que tentavam capitular. O processo foi mais longe: o povo alemão não se mostrou forte o suficiente e sucumbiu diante de sua própria fraqueza.
No momento em que Hitler afirma isto, consegue o supremo consolo. Não há responsáveis nem líderes na derrota. Apenas o povo incapaz de resistir ao inimigo, de multiplicar forças na própria desgraça.
Parodiando o velho Sartre, na sua única frase popular: a derrota são os outros.
Poderia ser diferente? Todos deveriam estar prontos para antever a derrota, antecipar-se a ela, garantir uma digna retirada? Nesse caso, pelo menos, ficaríamos privados dessa extraordinária visita à resistência humana em abandonar os sonhos, em compreender as limitações de seu papel.
Existe, talvez, uma saudável dose de paranóia em certos processos, uma recusa em aceitar os fatos como são apresentados pelos adversários. Mas, quando se projetam num mundo hostil e incontrolável as razões de nossa desventura, então aparecemos dramaticamente sós, ao sabor de uma corrente funesta que tudo pode nos impor, menos a aceitação do real, menos a redução do heróico papel que nos reservamos, no enredo alternativo que tecemos para nos preservar.
Humano, muito humano.

 

(*) "A Queda: As Últimas Horas de Hitler", dirigido por Oliver Hirschbiegel

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