O GLOBO
Mesmo o governo tendo conseguido impor a candidatura de Aldo Rebelo no segundo turno para presidir a Câmara, terá sido uma derrota política tanto fisiologismo explícito para ficar nas mãos do baixo clero e vencer por diferença tão pequena. A tática de PTB e PP de manter seus candidatos mesmo sem condições de vitória, apenas para ganhar cacife político diante do governo, deu certo.
Donos de mais de cem votos, os dois partidos foram assediados por vários ministros no intervalo entre o primeiro e o segundo turno, e negociaram bem seus apoios. Há indicações de que entraram na negociação uma "boa vontade" com os processos dos deputados envolvidos nas denúncias de corrupção.
O fato de Aldo Rebelo ter sido testemunha de defesa do ex-ministro José Dirceu era apontado como exemplo de que ele não teria distanciamento necessário para presidir os processos de cassação. De nada adianta o deputado Aldo Rebelo ser um político respeitável, se aceita ser eleito com a adoção de métodos "não republicanos". Ele terá uma tarefa adicional na presidência da Câmara: não deixar dúvidas sobre o rigor dos procedimentos nos processos de cassação dos deputados acusados de corrupção no escândalo do mensalão.
Mesmo não confirmado oficialmente o oferecimento do Ministério da Educação para o PP em troca dos pouco mais de 70 votos que o deputado Ciro Nogueira recebeu no primeiro turno, ou para o PL, que apoiou Aldo Rebelo logo no primeiro turno, só o fato de que os partidos tenham tido espaço para reivindicá-lo é uma prova do quanto o governo leva em conta o projeto educacional do país, que já foi das principais bandeiras do PT. Os percalços dos ministros da Educação até hoje mostram quais são as prioridades do governo.
Estamos assistindo à desconstrução de um partido que nasceu para fazer política de maneira diferente da tradicional e, chegando ao poder com o auxílio de métodos escusos, entregou-se ao mais abjeto fisiologismo, levando ao paroxismo os mesmos costumes políticos que condenava e pretendia reformar.
O recém-criado PSOL, nascido de uma dissidência do PT, parece trilhar o mesmo caminho de radicalização que dominou o PT no seu início: decidiram não votar, por considerarem que a eleição estava maculada pela intervenção do Palácio do Planalto. O mesmo erro que o PT fez, por exemplo, ao não participar do Colégio Eleitoral que elegeu Tancredo Neves presidente.
Mas, mais grave que isso, assistimos nos últimos tempos à desconstituição da democracia brasileira, na medida em que o Executivo, para impor suas vontades ao Legislativo, usa a corrupção e a troca de favores para transformar esse poder em mero caudatário de suas decisões.
Desconstituir é tirar poderes outorgados, é o desfazimento da construção jurídica, ensina o dicionário político. É isso que o governo vem fazendo sistematicamente, a partir do momento em que decidiu formar sua maioria parlamentar através do mensalão, comprando literalmente apoios, em vez de negociá-los politicamente.
Mesmo depois de todas as denúncias, de todas as confissões já feitas, de todo o ambiente de infâmia implantado no Legislativo, o governo não se pejou de adotar os mesmos mecanismos na negociação para a presidência da Câmara.
Negociar a redução das cláusulas de barreira com os pequenos partidos, na maior parte envolvidos nas negociatas do mensalão e na distribuição de cargos federais, é trocar votos pela desorganização partidária, que favorece o exercício do poder sem fiscalização.
Com a adoção das cláusulas de barreira nas próximas eleições, vários desses partidos que venderam seus votos em troca de dinheiro não terão atuação parlamentar, e com isso perderão espaços de negociações.
A eleição para a presidência da Câmara mostrou que o governo já não pode contar com sua base parlamentar, hoje mais virtual do que real. A cada votação importante, a cada decisão que necessitar do apoio da Câmara, o governo terá que negociar separadamente com cada grupo, com cada facção de partidos que não têm nenhum tipo de compromisso com programas, e nem posições definitivas sobre nada.
A situação do PL é exemplar: formou a chapa com Lula na eleição de 2002 depois de uma tenebrosa transação que resultou em R$ 10 milhões pagos com dinheiro do caixa dois. Depois de toda crise política desencadeada pelas denúncias do ex-deputado Roberto Jefferson, o partido decidiu com alarido ir para a oposição, comandado pelo seu presidente, Valdemar Costa Neto, que teve que renunciar para não perder o mandato pela cassação em plenário.
O vice-presidente José Alencar saiu do partido para poder continuar fiel ao governo do presidente Lula, e agora se vê na situação de ter o Ministério da Defesa, do qual é titular, exigido de volta pelo seu ex- partido, que voltou à base do governo às custas de verbas e outros favores. O fisiologismo teve tanto poder na campanha da Câmara que ministros negociaram apoios em reuniões de bancadas sem nenhum embaraço.
E até mesmo os candidatos finalistas usaram em seus discursos, embora de maneira indireta e com elegância, os apelos que fizeram de Severino Cavalcanti o preferido da maioria da casa: acenaram com viagens internacionais, falaram em aprovação de emendas, criticaram os que chamam os deputados menos visíveis de baixo clero.
Entrevista:O Estado inteligente
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