Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 24, 2005

Roberto Pompeu de Toledo Era muita coisa contra o pequeno Fernando

VEJA

O que há de exemplar na história
do menino que caiu no bueiro e
foi
tragado pelas águas, em São Paulo

O menino Fernando, de 4 anos, vinha brincando e pulando, esperto como sempre, pelo canteiro central de uma movimentada avenida de São Paulo, ao cair da tarde do domingo 18, quando, num passo em falso, caiu num buraco. Ou melhor, não propriamente num buraco, mas num bueiro. Ou, melhor ainda, nem bem num bueiro, mas numa espécie de poço. A mãe, que vinha com ele, viu o menino desaparecer debaixo do chão. Fernando foi tragado para o reino sombrio das galerias subterrâneas de água da cidade. Na quinta-feira passada, os bombeiros ainda escarafunchavam aquelas funduras. Não havia esperança de resgatar o menino vivo. Talvez nem morto.

O escorregão que precipitou Fernando para dentro do poço foi apenas o último elo de uma cadeia de infortúnios que o levou ao encontro do fim ingrato. Recuperar, elo por elo, a cadeia que o vitimou é juntar as peças que compõem uma história típica do país em que vivemos. O primeiro elo é a condição de menino pobre. Fernando morava, com os pais, no Jardim Damasceno, na região, desesperadamente pobre, da Brasilândia. É uma brincadeira de mau gosto dos loteadores de lugares desse tipo lhes darem o nome de "jardim". Não há jardins neles. Também não há praças. O acidente ocorreu em outra região, longe de casa. Foi na Avenida Inajar de Sousa, bairro da Freguesia do Ó, onde ele participara de uma festinha de criança. A Freguesia do Ó é melhor, muito melhor, do que o Jardim Damasceno. Mas é pior, muito pior, do que a Vila Nova Conceição ou Higienópolis, bairros ricos, onde o equipamento urbano é menos deteriorado.

O segundo elo é ter cabido a Fernando viver numa cidade historicamente especializada em rasgar avenidas onde antes corriam, a céu aberto, rios ou córregos. Instalam-se as avenidas em cima e os córregos ficam aprisionados, embaixo da terra. É o caso da Avenida Inajar de Sousa. Trata-se de situação que, entre outros efeitos indesejáveis, facilita as enchentes, ao sufocar os escoadouros naturais debaixo de um leito de asfalto. A Inajar de Sousa assenta-se sobre um córrego importante, o Cabuçu, afluente do Rio Tietê. Aquilo que de início chamamos de bueiro, e depois corrigimos para poço, na verdade não é uma coisa nem outra. O nome técnico é "posto de visita". É um buraco pelo qual se esgueiram os operários e os engenheiros quando necessitam inspecionar as galerias de água, lá embaixo. Isso quer dizer que o menino Fernando teve o azar de cair num buraco grande, capaz de engolir com folga seu pequeno corpo, e ainda por cima acabou por mergulhar num fluxo de água volumoso, onde dificilmente escaparia ao afogamento.

O próximo elo na cadeia de infortúnios é o menino ter nascido num país de ladrões, alguns de grande porte, como os que freqüentam os escândalos político-empresariais, e outros de miúdas, ou miudíssimas proporções, desesperados filhos da miséria, mas todos ladrões. Ele caiu no buraco porque estava destampado. E estava destampado porque roubaram a tampa. É espantoso o que se rouba de equipamento urbano – fios, placas de sinalização – no Brasil. A Telefônica, concessionária da telefonia em São Paulo, contabilizou 1.700 quilômetros de fios roubados no primeiro semestre do ano, no estado. A CET, órgão que controla o trânsito na cidade de São Paulo, repõe dez placas de sinalização a cada dia, em razão de roubo ou vandalismo, e mesmo assim não consegue repor tudo o que seria necessário. No caso do buraco em que caiu Fernando, ele deveria estar coberto por uma tampa de ferro. Há 57.000 tampas dessas na cidade. Quinhentas são repostas por mês. Num número ignorado mas certamente grande de sumiços, as tampas nem são repostas. O roubo de tampas decorre do feliz casamento da miséria com o crime organizado. A miséria fornece a mão-de-obra de que se aproveitam as redes de receptadores e o comércio de ferro-velho. Uma tampa como a da Avenida Inajar de Sousa custa 150 reais à prefeitura de São Paulo. O ladrãozinho a vende por talvez 10% disso ao interessado final.

O último elo é a debilidade do poder público no Brasil. A polícia devia coibir os roubos, mas... Já se sabe. As prefeituras, ou os governos estaduais, ou o federal, deviam repor de imediato os respectivos equipamentos roubados, mas... Mesmo que não haja corrupção, incompetência ou má vontade, o que freqüentemente é o caso, o Estado, seja em que nível for, nunca dá conta. São questões que o ultrapassam. O buraco em que caiu o menino, segundo os moradores do local, estava sem tampa havia muito tempo. Cobriam-no duas pedras, e mesmo assim só pela metade.

Havia fatores demais conspirando contra a sorte do pequeno Fernando, naquele momento fatídico em que ele pousou o pé no vazio e desapareceu debaixo da avenida, ao voltar da festinha. O secretário municipal Walter Feldman fez uma visita de solidariedade à família. Encontrou a mãe chocada, mas em todo caso capaz de manter um diálogo. O pai não. Permaneceu deitado o tempo todo, com uma toalha cobrindo o rosto.

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