Pode haver algo em comum entre o tosco ex-presidente da Câmara Severino Cavalcanti e um petista do porte intelectual da filósofa Marilena Chauí, por exemplo? Pode. Ambos culpam a imprensa pela crise que fez naufragar o político do mensalinho e o partido do mensalão. Punir o mensageiro porque trouxe mensagens indigestas é velho como a condição humana. Também é acreditar nas fantasias inventadas, primeiro, para tentar confundir o próximo, colocando a realidade de ponta-cabeça; depois, para conviver com uma versão devidamente sanitizada da adversidade. Cada qual julgue como queira se o achacador em má hora guindado ao comando da principal instituição legislativa do Brasil e os petistas de todas as graduações, que deram para vergastar o 'golpismo midiático', crêem, no íntimo, serem vítimas de uma conspiração, ou dizem isso porque lhes convém e os ajuda a exorcizar a verdade.
O que importa - e espanta - são as afinidades eletivas, como dizia Goethe, entre aquele que personifica o que a política brasileira tem de mais retrógrado e indecente e o partido que passou a vida tentando convencer o povo de que veio não apenas para moralizar e modernizar os costumes políticos e a administração pública no Brasil, mas também para acabar com as nossas iniqüidades sociais.
Comprovados, no primeiro caso, o que sempre se supunha possível e, no segundo, o que dezenas de milhões de brasileiros não poderiam supor que o fosse, a reação dos apanhados com a boca na botija é rigorosamente idêntica. O presidente Lula e os seus companheiros - com as proverbiais exceções que ratificam a regra - inventaram uma conspiração das elites para desestabilizar o governo petista, ou, na mais benigna das hipóteses, 'antecipar o debate eleitoral' de 2006. O instrumento, naturalmente, é a imprensa.
Daí o teatro da indignação: 'Jamais fui acusado de nada. Não vou me render às necessidades da mídia. Sempre defendi a liberdade de imprensa. Mas, em nosso país, liberdade de imprensa tem sido a porta aberta para suspeitas sem comprovação, para acusações sem provas, para a destruição de reputações.' Está de antemão perdoado o leitor que apostar que essas palavras foram proferidas pelo presidente da República, ou pelo seu exministro da Casa Civil, José Dirceu, ou ainda por algum outro hierarca do PT envolvido em denúncias de improbidade política, se não administrativa.
Trata-se, porém, de excertos do discurso de renúncia do deputado Severino, na quarta-feira, quando debitou o seu infortúnio à 'elitizinha (que) insuflou contra mim seus cães de guerra'. Aliás, tão veementes foram os seus protestos de inocência que a conclusão lógica da sua fala teria de ser: 'Diante disso, não darei a essa elitizinha a satisfação da minha renúncia.' As contas de Severino não fecham, como se vê. Tampouco as da retórica petista que, concessão das concessões, admite que o partido cometeu erros ou desvios. Ilícitos, delitos? Ni hablar, como dizem os espanhóis.
No entanto, apenas erros ou desvios, pecados veniais, não justificariam a prédica da refundação do PT. Bastaria remover as maçãs podres que mancharam a imagem da agremiação. Mas pedir um mínimo de lógica e plausibilidade aos severinos da política e àqueles que se arvoraram em seus opostos é pedir demais. O ponto que vale destacar é a ligeireza - pior, a leviandade - de todos quantos querem tapar o sol de seus malfeitos com a peneira de uma suposta imprensa facciosa, a serviço dos interesses das elites ou elitizinhas. Não que a mídia deva ser imune à vigilância e a críticas constantes. É pueril, porém, imaginar que, numa sociedade democrática e heterogênea como a brasileira, ela possa atuar como um monólito, ainda que o desejasse.
Quanto mais não fosse, o público não a perdoaria - ao contrário do que ocorre. Recente pesquisa sobre o assunto (Ibope, maio) mostra que 74% da população confia nos jornais.
Eles só perdem em credibilidade para os médicos (85%) e as Forças Armadas (75%). Enganam-se, portanto, os detratores da imprensa, imaginando que há campo fértil para as suas fabulações. Melhor fariam corruptores e corruptos se atentassem para o discernimento do povo. O septuagenário José Quarino de Souza, da mesma João Alfredo de Severino, é um exemplo perfeito. 'Não voto nele', disse ao Estado. 'Nem me vendo nem me troco.'