Entrevista:O Estado inteligente

segunda-feira, setembro 26, 2005

A outra face de Lacerda Mauricio D. Perez

O ESTADO DE S PAULO

Cumprem-se agora os 40 anos do governo Carlos Lacerda na Guanabara. Fora do Rio de Janeiro, a fama de Lacerda se destacou, principalmente, pela sua polêmica trajetória política. Já a sua outra face, de administrador, acabou se tornando mais restrita ao público carioca, que o tem muito presente na memória, tanto que se tornou o patrono das últimas quatro eleições municipais. E por um motivo muito simples: o carioca ainda hoje, ao andar pela cidade, tropeça nas realizações efetuadas naquele período. Pergunte a qualquer taxista ou a algum aposentado em fila de banco.

Pegue uma via expressa como a Radial Oeste, um túnel como o Rebouças, abra uma torneira para lavar o rosto, vá assistir a um concerto na Sala Cecília Meireles ou dar uma corrida no Parque do Flamengo. E à medida que os anos passam e o Estado do Rio e a sua bela capital definham, mais forte se torna a evocação ao governo Lacerda. Para explicar todo um conjunto de obras não faltaram versões, que se cristalizaram na historiografia e de alguma forma minimizaram o esforço empreendido. A mais comum entende que, sendo o principal opositor do governo Goulart, Lacerda se tornou o principal destinatário da ajuda econômica que o programa Aliança para o Progresso proporcionava à América Latina. Depois de março de 1964 os benefícios teriam vindo de um regime militar que ajudara a entronizar.

Fugindo das representações e se apoiando numa análise cuidadosa feita na ponta do lápis com as contas do período, chega-se a outras conclusões. A famosa ajuda americana foi responsável por apenas 5% das receitas e o governo Castelo Branco não só não ajudou, como foi especialmente nocivo para a economia da Guanabara. Na verdade, 90% dos recursos vieram do próprio Estado, que conservou a mesma estrutura fiscal do antigo Distrito Federal.

Qual foi o segredo? A montagem de uma administração pública moderna, gerencial, e uma política de tolerância zero com o clientelismo. Aplicaram o princípio da centralização normativa e descentralização executiva; foram pioneiros na adoção do orçamento-programa; instituíram a admissão obrigatória por concurso e a meritocracia com tal rigor e obstinação que chegaria a ser anedótica se, de fato, não tivessem produzido resultados expressivos na administração de pessoal, na ascensão do banco estadual e na educação primária. Esse 'capital da radicalidade' fazia parte do modo como Lacerda concebia o jogo político e era um contraponto da política patrimonialista e clientelística característica da aliança PTB-PSD que era praticada de forma especialmente intensa no Rio de Janeiro.

Depois de longos anos de feroz oposição, a metralhadora giratória chegava ao poder, em 1960, com um imenso telhado de vidro, tendo à espreita, pronta para o revide, uma coleção de adversários que fora amealhando. Consciente de que sua única alternativa era realizar, debruçou-se sobre o Estado recém-nascido e superou o desafio a tal ponto que hoje o carioca se pergunta: por que ninguém mais fez o que ele fez? Não houve mágica, não houve soluções deslumbrantes. Adotaram a agenda que havia na época, aquilo que no fim dos anos 1950 era unanimidade entre especialistas e associações de classe. Protegida de influências perniciosas, do pistolão, do favoritismo, a máquina pública acabou por mostrar do que era capaz. O paquiderme ensaiou passos de valsa e ganhou eficiência. Podemos destacar, como um dos projetos característicos dessa reforma administrativa, desse modelo que foge da tradicional política da clientela, os resultados obtidos no campo do saneamento básico, em concreto, o esgoto sanitário. Todos sabemos que esse tipo de obra não dá voto. A própria amiga de Lacerda, Lota Macedo Soares, responsável pelas obras do Parque do Flamengo, fazia questão de recordar-lhe que, quando as pessoas fossem apertar o botão da descarga, não se iriam lembrar dele. Para compreender o alcance da empreitada é preciso recordar que o esgoto chegou à capital do Império em 1857, pela empresa inglesa City. Em 1900 a rede atingia o Bairro do Encantado, na região suburbana da cidade - 60 anos depois ali continuava. Em cem anos foi construída uma rede de mil quilômetros, na sua maior parte anterior às décadas de 30 e 40. Em apenas cinco anos aquele governo expandiu a rede em 600 quilômetros, ou seja, 60% de tudo o que fora feito em um século, com uma ajuda do Banco Mundial que representou 20% do investimento total. Com exceção da construção do emissário oceânico na zona sul, o subúrbio foi a região que recebeu a quase totalidade desse benefício.

Não deixa de ser irônico que o governador 'assassino do pai dos pobres' tenha feito o que outros governadores 'mais amigos dos pobres' não fizeram. Se quisermos uma comparação, o atual projeto de despoluição da Baía de Guanabara, após mais de dez anos, com metade dos recursos provenientes do mesmo Banco Mundial, construiu apenas 10% do que deveria ter sido feito. Os atrasos no cronograma das obras se tornaram tão freqüentes que as parcelas do Banco Mundial acabaram sendo suspensas e três multas foram aplicadas por ele. A imprensa carioca alertou para o fato de que quase US$ 1 bilhão foi para o 'esgoto'. A democracia atualmente não dispõe de meios para proteger a administração pública do parasitismo político. Ela é refém de interesses partidários e particulares. Esse antagonismo não é intrínseco, os interesses não são necessariamente conflitantes. É possível realizar um projeto políticopartidário e trabalhar com uma administração gerencial. É uma pena que o político brasileiro não saiba usar a galinha dos ovos de ouro. Prefere matá-la e comê-la.

Mauricio D. Perez é doutor em História

Arquivo do blog