Entrevista:O Estado inteligente
- Índice atual:www.indicedeartigosetc.blogspot.com.br/
- INDICE ANTERIOR a Setembro 28, 2008
sábado, setembro 24, 2005
Augusto Nunes Uma noite no circo-teatro
Como circo, não era lá essas coisas. No curto comboio de trailers viajavam o dono (e apresentador do espetáculo), dois trapezistas, um mágico com sua ajudante, um palhaço, dois ou três funcionários e um homem com cara de galã mexicano – o bigode fino e bem tratado combinava com o topete besuntado de brilhantina. Era artista de teatro, mas eu ainda não sabia.
Não havia naquele circo o hipnótico globo da morte, nem jaulas com feras que faziam tudo o que mandava o domador. Faltavam esses requintes de circo estrangeiro. Mas uma atração adicional compensava as carências: na segunda parte da noitada era apresentada uma peça teatral. Isso fazia a diferença e justificava o nome pendurado sobre a entrada, com letras em néon vermelho: Circo Teatro Irmãos Nogueira.
No começo da década de 60, a trupe andou ancorando em Taquaritinga uma vez por semestre, para temporadas de três semanas. Numa noite de 1961, com pouco mais de 10 anos, fui apresentado aos subúrbios do mundo de Shakespeare: sentado no camarote do prefeito (o prefeito era meu pai), vi de perto um drama da pesada: "Maconha, a Erva Maldita".
O elenco reunia um trio liderado pelo homem com jeito de galã. Ele interpretava o papel do filho viciado, que infernizava a vida do pai (um dos trapezistas) e da mãe (a ajudante do mágico). A procissão de horrores consumia quase integralmente os 30 minutos do enredo. Só cessava na cena do encerramento, quando o protagonista, depois de um ligeiro sumiço por trás da cortina improvisada, reaparecia enfim liberto do vício hediondo. Abraçados, pais e filho festejavam o final feliz.
Durante meia hora, a choradeira e a indignação rolavam nas arquibancadas e no palco-picadeiro. A cada tragada, lá vinham bofetadas na mãe, surras no pai e outras brutalidades, sublinhadas por insultos, ofensas e blasfêmias. Em vão, os espectadores tentavam deter o moço enlouquecido com berros irados e palavrões. Ele continuava a barbarizar em cena até abandonar o maconha. Só então a caipirada na platéia podia dispensar-se de tanto sofrimento.
Achei a coisa meio exagerada. Teatro era aquilo mesmo? Voltei na noite seguinte para concluir a avaliação. Seria apresentada a peça que completava o raquítico repertório: "Vida, Paixão e Morte de Nosso Senhor Jesus Cristo". Já vira a história no cinema, contada num filme mudo. Resolvi conferir a versão circense e, sobretudo, acompanhar a performance do protagonista. O filho maluco de "Maconha. A Erva Maldita" também interpretava o filho de Deus.
Soube tarde demais que ele não atuaria naquele sábado. Durante a madrugada, uma gripe medonha derrubara o astro. Ao acordar, balbuciou o recado ao patrão: faltavam-lhe condições físicas para encarnar o papel de Jesus. O patrão já se conformara com o cancelamento do espetáculo quando foi abordado por um exotismo municipal chamado Chicho Laize.
Muito doido, muito falante, muito audacioso, disfarçando a matreirice com a expressão abobalhada, Chicho colecionava façanhas que os adultos da cidade conheciam. Sem profissão definida, vivia de bicos. Naquela temporada, ajudara a erguer a lona e passara a comportar-se como amigo de infância da turma do circo. Todos (inclusive o dono) o tratavam pelo nome. Mas nenhum deles (inclusive o dono) sabia que Chicho era maluco.
Informado da defecção no elenco, procurou o chefe.
– O senhor sabe qual é minha profissão verdadeira? – perguntou-lhe.
O silêncio do homem respondeu que não.
– Artista – revelou Chicho. – Artista de teatro.
– Você sabe fazer Jesus Cristo? – animou-se o patrão.
– Esse papel é o que mais conheço – gabou-se Chicho.
A peça de 20 minutos já começava no calvário. Quando a cortina se abriu, lá estava Chico Laize carregando uma pequena cruz de madeira, dois soldados romanos (os trapezistas) armados de chicote e Maria Madalena (a ajudante do mágico) com uma toalha na mão. Surpresa na platéia. Um soldado xingou Jesus e tascou-lhe a chicotada a centímetros do pé do mártir.
– Cuidado que isso vai me pegar! – advertiu Chicho em tom feroz.
Risadas na platéia.
Mais alguns passos e ouviu-se o pedido.
– Vem cá e me ajuda – disse o protagonista a um dos soldados. – Essa cruz é meio pesada.
O romano ignorou o apelo e mandou ver no chicote.
– Agora me pegou! – berrou Cristo. – Eu tinha avisado, porra!
Gargalhadas na platéia. Aos sussurros, o dono do circo ordenou um intervalo de cinco minutos.
Reabertas as cortinas, as arquibancadas vibraram. Pendurado na cruz, cercado pelo bom ladrão (um dos soldados do primeiro ato) e pelo mau ladrão (o outro soldado), Chicho exibia um cigarro no canto da boca.
– Se és o filho de Deus, livrai-me desta cruz – declamou o bom ladrão.
– Tá difícil – retrucou Jesus. – Mas vou falar com meu pai.
O mau ladrão partiu para a provocação:
– És apenas um mentiroso sem poderes – desdenhou. – Se tens poderes milagrosos, por que não te livras desta cruz?
Chicho irritou-se e rasgou o roteiro.
– Cala a boca, ladrão – ordenou.
Em seguida, com o indicador apontado para o alto, soltou a ameaça:
– Lá em cima eu te acerto.
O acesso de ira fez o cigarro cair-lhe da boca. Alegando risco de incêndio, o dono do circo entrou em cena e avisou que o espetáculo terminara. No dia seguinte, o circo deixou a cidade para nunca mais voltar. Demorei a descobrir que teatro era bem melhor que aquilo.
Temo que os meninos do Brasil, expostos ao novelão das CPIs, imaginem que político é aquilo. Os pais devem explicar-lhes que não é. Ou desligar a TV.
Arquivo do blog
-
▼
2005
(4606)
-
▼
setembro
(497)
- A votação mais cara do mundo Bruno Lima Rocha
- LUÍS NASSIF Efeitos dos títulos em reais
- Batendo no muro LUIZ CARLOS MENDONÇA DE BARROS
- Dirceu entre a inocência e a onipotência MARCELO C...
- ELIANE CANTANHÊDE Nova República de Alagoas
- CLÓVIS ROSSI O país do baixo clero
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO O ELEITO DE LULAL
- DORA KRAMER Agora é que são elas
- EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO Despudores à parte
- João Mellão Neto Como é duro ser democrata
- Roberto Macedo Na USP, uma greve pelas elites
- EDITORIAL DE O GLOBO Cidade partida
- MERVAL PEREIRA O gospel da reeleição
- Luiz Garcia Juiz ladrão!
- MIRIAM LEITÃO Políticas do BC
- Raça, segundo são João Jorge Bornhausen
- Cora Rónai Purgatório da beleza e do caos
- Fundos e mundos elegem Aldo
- EDITORIAL DE O GLOBO Desafios
- A Derrota Política do Governo!
- MERVAL PEREIRA Vitória do baixo clero
- MIRIAM LEITÃO Sem medidas
- EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO Atrasado e suspeito
- DORA KRAMER Muito mais do mesmo
- LUÍS NASSIF Indicadores de saneamento
- ELIANE CANTANHÊDE Vitória das elites
- CLÓVIS ROSSI A pouca-vergonha
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO NORMA ANTINEPOTISMO
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO DESVIOS SEMÂNTICOS
- Aldo vence, dá gás a Lula e esperança aos "mensale...
- JANIO DE FREITAS Dos valores aos valérios
- EDITORIAL DO JB A vitória da barganha
- AUGUSTO NUNES Berzoini foi refundado
- Se não se ganha com a globalização, política exter...
- Fome de esquerda Cristovam Buarque
- A valorização do real em questão
- EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO A debandada dos p...
- EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO Precisa-se de ger...
- Ineficiência fiscal e a 'Super-Receita' Maurício M...
- DORA KRAMER Adeus às ilusões
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO OS DEPUTADOS DECIDEM
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO MAIS DO MESMO
- CLÓVIS ROSSI Cenas explícitas de despudor
- FERNANDO RODRIGUES Uma Câmara submissa
- ELIO GASPARI Bicudo foi-se embora do PT
- LUÍS NASSIF A discussão do saneamento
- "Upgrade" PAULO RABELLO DE CASTRO
- EDITORIAL DE O GLOBO Gastamos mal
- EDITORIAL DE O GLOBO Chávez fracassa
- No governo Lula, um real retrocesso HÉLIO BICUDO
- MIRIAM LEITÃO Das boas
- MERVAL PEREIRA A base do mensalão
- A frase do dia
- EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO Desculpas não bastam
- Jóia da primavera Xico Graziano
- Oportunidade perdida Rubens Barbosa
- DORA KRAMER Com aparato de azarão oficial
- LUÍS NASSIF Os caminhos do valerioduto
- JANIO DE FREITAS Esquerda, volver
- ELIANE CANTANHÊDE Todos contra um B
- CLÓVIS ROSSI A crise terminal
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO FRAUDES NO APITO
- Diferença crucial RODRIGO MAIA
- EDITORIAL DE O GLOBO Dois governos
- Arnaldo Jabor Manual didático de ‘canalhogia’
- MIRIAM LEITÃO Além do intolerável
- MERVAL PEREIRA Espírito severino
- AUGUSTO NUNES Os bandidos é que não passarão
- A crueldade dos humanistas de Lancellotti Por Rein...
- O Cavaleiro das Trevas
- Juristas Dizem Que Declarações DE DIRCEU São Graves
- O PT e a imprensa Carlos Alberto Di Franco
- A outra face de Lacerda Mauricio D. Perez
- Reinventar a nação LUIZ CARLOS BRESSER-PEREIRA
- VINICIUS TORRES FREIRE Urubus políticos e partidos
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO CHÁVEZ E A POBREZA
- AUGUSTO NUNES Os gatunos estão em casa
- MERVAL PEREIRA O fator Mangabeira
- João Ubaldo Ribeiro Mentira, mentira, mentira!
- MIRIAM LEITÃO Eles por eles
- DORA KRAMER Um perfil em auto-retrato
- EDITORIAL DE O ESTADO DE S PAULO Contraste auspicioso
- Gaudêncio Torquato O horizonte além da crise
- São Paulo olhando para o futuro Paulo Renato Souza
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO MOMENTO IMPORTANTE
- EDITORIAL DA FOLHA DE S PAULO DÍVIDA EXTERNA EM REAL
- CLÓVIS ROSSI As duas mortes de Apolônio
- ELIANE CANTANHÊDE Malandro ou mané?
- LUÍS NASSIF A reforma perdida
- Para crescer, é preciso investir em infra-estrutur...
- FERREIRA GULLAR Alguém fala errado?
- JANIO DE FREITAS Nada de anormal
- Lula também é responsável, afirma Dirceu
- Augusto de Franco, A crise está apenas começando
- Augusto Nunes Uma noite no circo-teatro
- Baianos celebram volta de Lula a Brasília
- Lucia Hippolito Critérios para eleição de um presi...
- MERVAL PEREIRA A voz digital
- MIRIAM LEITÃO O perigo é olhar
- FERNANDO GABEIRA Notas sobre os últimos dias
-
▼
setembro
(497)
- Blog do Lampreia
- Caio Blinder
- Adriano Pires
- Democracia Politica e novo reformismo
- Blog do VILLA
- Augusto Nunes
- Reinaldo Azevedo
- Conteudo Livre
- Indice anterior a 4 dezembro de 2005
- Google News
- INDICE ATUALIZADO
- INDICE ATE4 DEZEMBRO 2005
- Blog Noblat
- e-agora
- CLIPPING DE NOTICIAS
- truthout
- BLOG JOSIAS DE SOUZA