Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 24, 2005

Traficantes presos são donos de restaurantes de luxo

VEJA

Pizza bianca

A operação que prendeu traficantes ligados
a dois dos restaurantes mais badalados do
Rio termina em pastelão, com 2 milhões de
reais roubados da sede da Polícia Federal


Daniela Pinheiro

 

Ivone Perez
Fachada da pizzaria e o bucho com cocaína: 1,6 tonelada da droga afastou a clientela vip
Ricardo leoni/Ag. O Globo


Não há CPI do Mensalão, furacão Rita nem renúncia de Severino. No Rio de Janeiro o grande assunto é o "caso Satyricon-Capricciosa". A história tem todos os ingredientes que um grande escândalo merece: envolve nomes graúdos da sociedade carioca, restaurantes da moda e uma quantidade monstruosa de cocaína escondida dentro de pedaços de bucho de boi que seriam exportados para a Europa. Na semana passada, o caso ganhou novos contornos destinados a apimentar ainda mais as conversas. Todo o dinheiro dos traficantes, amealhado na bem-sucedida operação policial de captura dos acusados, simplesmente sumiu da sede da Superintendência da Polícia Federal no Rio. Cerca de 2 milhões de reais em notas de real, euro e dólar. Quer mais? Os suspeitos do roubo são sete agentes federais. É ou não coisa de filme? Mas o que teria sido um louvável trabalho de investigação da PF se transformou em mais uma chanchada da crônica policial brasileira.

Nas rodinhas sociais, o fato ficou conhecido como "caso Satyricon" ou "caso Capricciosa" em alusão aos nomes dos restaurantes de uma das suspeitas de integrar a quadrilha de traficantes internacionais, a psicóloga Sandra Tolpiakow. Dona-de-casa, praticante de ioga e estudante de cabala, Sandra foi casada com o chefão do grupo, o português José Palinhos, com quem tem dois filhos. Até a semana passada, o ex-casal e outras nove pessoas estavam presos em Goiânia, onde o inquérito foi instaurado. Sandra é o suposto elo entre o tráfico e o empresário italiano Miro Leopardi, seu padrasto, que há vinte anos deu início ao império gastronômico (faturamento mensal estimado em 1,5 milhão de reais) que engloba cinco pizzarias e dois restaurantes estrelados. Em um domingo à noite, uma cena usual na pizzaria Capricciosa, no bairro do Jardim Botânico, é ver Chico Buarque em uma mesa, José Bonifácio de Oliveira Sobrinho, o Boni, em outra, e Ciro Gomes e Patrícia Pillar mais adiante. Os restaurantes Satyricon, um em Ipanema e o outro em Búzios, são ainda mais badalados. Quando esteve no Brasil, a cantora Madonna jantou em um deles. Assim como os roqueiros dos Rolling Stones.

A PF afirma que Palinhos tem participação nos negócios de Leopardi, de quem foi sócio em um frigorífico há dez anos. A prova seriam gravações telefônicas entre ambos, em que combinavam negócios. Leopardi nega o envolvimento, mas admite ter tratado de um reparo no restaurante de Búzios com o traficante. "Ele se ofereceu para fazer algo lá, minha mulher pediu para eu aceitar e não ser grosseiro. Não tenho absolutamente nada com ele. Os negócios são só meus. Ganho dinheiro limpo e honesto há 22 anos. Esse sujeito é indigno, scemo (idiota, em italiano)", disse Leopardi a VEJA. Segundo ele, Palinhos orbitava em torno de seus negócios apenas por ser pai dos filhos de sua enteada. "Eu já o tinha proibido de pisar na minha casa, mas minha mulher e Sandra sempre brigavam comigo. Não gosto dele, nunca gostei", diz.

Na devassa feita no apartamento de Leopardi a polícia encontrou cerca de 90.000 dólares em dinheiro escondidos em compartimentos secretos, gavetas de meias e em bolsos de ternos. "Era uma coisa incrível. A gente dava um soco na parede, tinha um buraco oco cheio de dinheiro. Dava um chute no chão, também saía dinheiro", relatou um agente. "É dinheiro de vinte anos de economias. Minha mulher gosta de guardar dinheiro assim. Tanto que muitas notas eram de 1 e 5 dólares, gorjetas que os garçons ganhavam de gringos e ela trocava para eles em reais", conta o empresário. Uma das cenas mais surpreendentes, ocorrida durante a devassa e descrita por um policial, se deu quando o dinheiro estava empilhado em cima da mesa. Marly, mulher de Leopardi, acariciava e mandava beijinhos para as notas.

Carlos Ivani/Ag. O Globo
Leopardi e sua enteada e sócia Sandra: ele nega envolvimento; ela está presa

De acordo com a investigação, a quadrilha de Palinhos trazia a droga da Colômbia, recheava o bucho com a cocaína no Rio e a mandava para Lisboa. Lá, comparsas se encarregavam de distribuí-la em toda a Europa. A 1,6 tonelada apreendida renderia aos bandidos até 120 milhões de reais. Durante dois anos, a Polícia Federal investigou, seguiu e fotografou os passos dos integrantes da quadrilha com base em informações enviadas pela polícia portuguesa. Escutas telefônicas, cartões de crédito monitorados, bilhetes aéreos rastreados, os suspeitos eram vigiados 24 horas. Foram usados cerca de setenta homens na investigação. "Demoramos seis meses só para ver o rosto deles", conta o delegado Ronaldo Magalhães, chefe de Inteligência Policial da Delegacia de Repressão a Entorpecentes. Foi uma das operações mais caras da PF. Como muitas vezes os agentes tinham de se passar por clientes e freqüentar os restaurantes da quadrilha, a conta era alta. "Os agentes me ligavam espantados porque lá a água custava 15 reais e um prato, 80 reais. Eu falava que podiam gastar", diz Magalhães. Os sinais exteriores de riqueza dos integrantes da quadrilha eram evidentes. Em menos de dois anos, amealharam um patrimônio avaliado em pelo menos 50 milhões de reais. Fazendas em Goiás, uma mansão em Búzios, entre outros imóveis, além de uma frota de dezoito carros de luxo.

 

Gabriel de Paiva/Ag. O Globo
O dinheiro apreendido que desapareceu: polícia bandida
O sumiço do dinheiro – apreendido na casa de outro membro da quadrilha, o também português Antônio Damaso – tornou-se um imbróglio para a polícia. Os erros se repetiram um atrás do outro desde que o montante apreendido foi entregue à PF fluminense. Há muito se sabe que ali está um dos maiores focos de corrupção da corporação no país. Ainda assim, nenhuma providência foi tomada. O dinheiro ficou numa sala desprovida de qualquer aparato sofisticado. Só para se ter uma idéia, a chave do cofre ficou guardada no armário de um funcionário. "É um exemplo de que a estrutura do Rio está falida. Todas as operações importantes são conduzidas por gente de fora do estado. É inadmissível", diz o procurador Gino Liccione, coordenador do grupo de Controle Externo da Atividade Policial. No que diz respeito aos restaurantes, os clientes minguaram desde que o caso veio à tona. Os cerca de 300 funcionários estão preocupados com o futuro do negócio. No entanto, alguns, em tom de blague, dizem estar aliviados por, finalmente, poder variar o cardápio. Coincidência ou não, nos últimos meses o prato mais servido aos empregados da casa era dobradinha. A iguaria cujo ingrediente principal é... bucho.

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