Entrevista:O Estado inteligente

sábado, setembro 17, 2005

Roberto Pompeu de Toledo A mais estonteante das quartas-feiras

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Notas sobre o dia em que Severino tombou
de
um lado e Roberto Jefferson do outro

Tudo tão Brasil... O dono do restaurante da Câmara capricha no jeitão de galã maduro de novela do SBT, a cabeleira coroada por um laborioso topete, a gravata vermelha caprichosamente armada sob o terno escuro, na hora entre todas triunfal de apresentar o cheque, sim, "o" cheque, aquele. A seu lado, o mulherão de pernas bonitas, saltos altíssimos. Ele, 54; ela, 30. Vai mostrar o cheque, mas aproveita o momento para uma oração: "Obrigado, meu Deus, obrigado pela força, pelos meus filhos, pela família maravilhosa..." Era um tributo à onda evangélico-carismática que assola o país. Tão Brasil... A contrição da prece em oposição às sugestões da morenaça ao lado. A Bíblia e a Playboy em estado de alerta. No momento culminante, o dono do restaurante levanta ao alto uma cópia ampliada do cheque, tal o capitão Cafu ao exibir a taça do pentacampeonato. O caneco é nosso!

Foi uma quarta-feira estonteante. Se de manhã teve Sebastião Buani, o dono de restaurante que pôs a nocaute o presidente da Câmara, à tarde seria votada pela Câmara a cassação do deputado Roberto Jefferson. A Câmara, como se sabe – e, quem não sabia, ficou sabendo agora, com a ampla divulgação de suas sessões – é a casa-da-mãe-joana. É lá que fica esse famoso estabelecimento. Todo mundo conversa ou fala ao celular, ninguém presta atenção em ninguém, e grande parte prefere, em vez de se sentar, ficar circulando ou formando rodinha junto ao microfone de apartes. Assim ia a sessão, enquanto falavam o relator/acusador e os advogados de defesa, na bagunça habitual, até que... Chegou a vez dele! O ambiente transmudou-se. Silêncio absoluto. Respirações suspensas.

O Congresso parecia voltar aos grandes dias, o tempo dos grandes oradores. Carlos Lacerda vai falar! E então era aquele frenesi, a tensa expectativa, depois o silêncio reverencial. Ou, antes, nos tempos em que Machado de Assis cobria as sessões do Senado... Eusébio de Queiroz vai falar!, Zacharias vai falar! "Nenhum tumulto nas sessões. A atenção era grande e constante", escreveu o autor de Dom Casmurro, numa crônica célebre. Roberto Jefferson vai falar! E ele realmente magnetizou a platéia, um virtuose das entonações que vão lá em cima e descem cá em baixo em esmerada cadência, das pausas de fazer parar o coração, do gesto singelo de imitar um aviãozinho quando disse que o presidente Lula gosta, mesmo, é de voar. Tão Brasil de hoje... O homem que confessadamente sumiu com 4 milhões de reais e, também confessadamente, uma vez reuniu sua bancada para saber se queria receber o mensalão é o único capaz de silenciar a Câmara.

"Saudade, ai que saudade do baixo clero." Era o que devia estar pensando Severino Cavalcanti naquele momento. O repórter Diego Escosteguy contou, em O Estado de S. Paulo, que assim que recebeu a notícia de que tinha aparecido o famoso cheque o presidente da Câmara olhou para o chão e não disse nada. Fez-se silêncio na sala de sua casa, cheia de assessores e advogados. Saudade do baixo clero... Severino é a típica vítima da síndrome do passo maior que a perna. Se tivesse ficado no seu canto, estaria tocando a vidinha, praticando em paz um golpezinho aqui e outro acolá... Agora, restava-lhe o silêncio, o segundo grande silêncio do dia, a cara de caranguejo, como descobriu o genial cartunista Loredano, enterrada no chão.

A assessoria de Severino dá o que pensar. Nela pontificou, nestes dias críticos, o chefe da assessoria jurídica da Câmara, Marcos Vasconcelos. Ele é da assessoria da casa como um todo, deve zelar pela integridade e pela respeitabilidade da instituição, e, no entanto, mergulhou de cabeça na defesa pessoal de um chefe bichado até as vísceras. Severino baixou as armas, diante do cheque fatídico, mas não sem antes praticar uma última indignidade: pôs a culpa num morto, e logo um filho morto – o filho, vitimado num desastre de automóvel, teria sido, ele, sim, o beneficiário do cheque, para cobrir despesas de campanha.

A quarta-feira gorda terminou num clima alucinatório. Na janela do apartamento brasiliense de Roberto Jefferson, vislumbrava-se, à noite, a sombra de um garçom que servia champanhe. Comemorava-se. Pouco antes ele tinha sido cassado por seus pares. E comemorava-se. Antes, Jefferson se despedira dos jornalistas dizendo: "Esta é a última semana de inverno. A primavera está chegando". Um enigmático fecho, de poéticas ressonâncias, para uma ópera-bufa. Estaria chegando a primavera da democracia brasileira, depois do inverno de todas as vilezas? Sempre se espera que, desta vez, vamos. Depois de Collor, jamais seríamos os mesmos. Depois dos anões do Orçamento, jamais seríamos os mesmos. Mas somos os mesmos. E alguém duvida que Severino, renunciando, será reconduzido pelo fiel eleitorado? Ou o bispo Rodrigues, se escapar da cadeia, ou o Valdemar? Alguém duvida que a filha de Roberto Jefferson, hoje vereadora no Rio de Janeiro, colherá estrondosa votação? Tão Brasil... Quanto mais pensamos que nos mexemos, mais continuamos no mesmo lugar.

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