o globo
Nossa crise acontece dentro de um mundo em crise. A direita global, o fanatismo religioso e político, a estupidez corporativa tomaram o poder na Terra. De Bush aos homens-bomba. A solidão social aumentou, com ausência de caminhos políticos. Vivemos com um narcisismo defensivo, medo de compromissos, sem ideologias, sem ética, sem destino. A morte late como cachorro em cada esquina. Em vez do medo, temos a Síndrome de Pânico. Em vez das neuroses, as psicoses. Euforias loucas em vez de alegria, sexo em vez de amor, imediatismo em vez de prudência, desterritorialização, ubiqüidade virtual em vez de geografia. "Hoje" em vez de "depois", pois o tempo está mais rápido que a vida.
E, no meio disso tudo, desaba o Brasil.
Que estará acontecendo em nossas cabeças? Estamos vivendo a mais funda das mudanças psicossociais. E esta crise não é "fora" de nós, dentro do Congresso apenas ou longe, em Brasília, na cara do Severino ou no gaguejar boçal do Lula. Esta crise se passa também numa região dentro de nós mesmos chamada "Brasil". Há um Brasil fora e um Brasil dentro. Recebemos o pior bombardeio de notícias sobre nossa sensibilidade, desde o golpe de 64 até o Collor. E nessas duas épocas, o que mais nos transfigurou não foram as torturas brutais ou roubalheiras de PC Farias — foi o escândalo do cotidiano "normal".
Na ditadura, o mais terrível era a tristeza daqueles dias militares, a tentativa de um otimismo fabricado que a direita militar nos oferecia, os brados de "Avança Brasil", os catecismos de moral e civismo, o "ame-o ou deixe-o", os hinos de propaganda, a música de Don e Ravel, a "Brazuca" tocando na Transamazônica, o Médici torcendo pelo Flamengo, enquanto a tortura comia solta, a cara populista do Costa e Silva, as gargalhadas deslumbradas de dona Yolanda, a impotência diante da burrice.
Na era Collor, não foi a grana tascada que nos pirou; o mais chocante foi a Casa da Dinda, a piscina verde no meio da caatinga em Canapi, em plena seca (lembram?), a barrigona do irmão de Rosane que dava tiros nas pessoas, a cara de gavião do Collor, a voracidade desde a vitória, nas ilhas Seychelles para celebrar o triunfo, as festas do poder, Zélia dançando apaixonada com o Boto Tucuxi , dona Elma, usando Chanel e beijando a careca do PC vestido de Vuitton. O que mudou nossa cabeça e acabou em impeachment foram os dois anos de breguice e impunidade arrogante.
A ditadura chegou como uma injustiça que nos humilhou mas nos fez reagir, ou pela resistência ou (infelizmente) pela auto-indulgência de sermos "nobres vítimas". No impeachment de Collor, nós tomamos a iniciativa de banir o absurdo daquela farsa.
A ditadura nos fez vítimas, Collor nos fez ativos. E a crise atual... nos faz otários.
Como não víamos nada? Como elegemos esses facínoras que aparecem como uma invasão de bichos escrotos vomitados do chão de Brasília? Somos tão culpados quanto Lula. Nossas desilusões eram parciais, localizadas. Agora, a desilusão é sistêmica, geral. Agora sabemos que não é o desvio que está errado; é a norma.
Que estará mudando em nossas cabeças? Bem...
O futuro da desilusão
Na história do Brasil, só as desilusões nos levam para frente. A Coroa, o Estado, o Poder sempre nos prometeram utopias, sempre nos enganaram com o discurso ufanista ou promissor. Por isso, nossa desilusão chega a ser "revolucionária". Progredimos pelas desilusões. E as desilusões da hora permitem-nos contemplar não só a vergonha do Sistema, como o absurdo de esperanças totalitárias do "progressismo" cego tipo Dirceu e PT leninista. Talvez paremos de acreditar numa "solução" para o Brasil ou em salvadores da Pátria. E isso é bom. Não há mais solução; só há processo. Só nos restam utopias parciais, administrativas, sindicais, institucionais, reformistas. E isso é bom...
Some a idéia de que um dia chegaremos "lá" Lá, onde? Não há lá; só aqui, hoje.
Não estamos mais à beira do abismo; não há abismo. Há pântano, paralisia.
Teremos esperanças mais modestas, esperanças sem utopia. A esperança de antes, radical, utópica, desconstruía as mudanças possíveis.
Depois desse vexame, teremos menos fé nos políticos e mais fé em nós mesmos. Talvez sejamos menos babacas. Talvez não votemos mais pelo carisma ou brados de ignorantes. Sabemos que a competência é mais revolucionária que sonhos ideológicos. Sabemos que temos de reformar as antigüidades da "esquerda". Intelectuais serão talvez mais céticos, porém menos silenciosos e arrogantes?
E os perigos? Bem... como sempre, eles são muitos. Tenho medo de que a Lei fique mais rala. Quem vai respeitar o Bem Público, depois desse exemplo sujo a que assistimos, quem vai respeitar a República depois do trauma da cara torta do Severino? Eu temo a desconstrução dos serviços do Estado, da burocracia, pelos mesmos motivos.
Tenho medo também que nossas cabeças caiam no niilismo político, já que nos sentimos bestas quadradas, desamparadas pelas instituições. Tenho medo principalmente que a desilusão com Lula nos leve não à busca de algo ou alguém melhor, mas, sim, que procuremos algo pior, mais legível, mais óbvio, mais populista. Tenho medo de um desastre como Garotinho, por exemplo, pois o populismo vem com a descrença no popular. E ele já se organiza, com a adesão de gente "progressista" como Carlos Lessa, o intelectual orgânico da demagogia evangélica... Disso, tenho medo. Isso, significaria a desconstrução definitiva do país. De qualquer forma, confio em nosso desencanto, confio em nossa vergonha, de nos sentirmos tão idiotas. Tenho fé em nossa depressão, que pode gerar mais sabedoria.
Seculares fisiológicos, patrimonialistas, escrotinhos, arrogantes, malandrinhos e megalôs, só nos resta pensar: "O que falta desaprendermos, para chegarmos à idéia de um país moderno? Como faremos para chegar ao futuro de uma desilusão?"
Entrevista:O Estado inteligente
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