Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 04, 2005

Santa crise Cesar Maia

JB

Na dialética dos ciclos políticos, o novo ciclo nasce negando o anterior e carregado de expectativas, digamos de utopias de curto prazo. O momento da transição surge como crise. Como crise de hegemonia, de direção. Mas é na crise que as posições políticas ficam mais nítidas e se legitimam, na medida em que formam opinião publica. Os novos ciclos políticos são períodos mais ou menos longos até alcançarem a sua maturação. É durante este período de amadurecimento que eles definem, de fato, a sua natureza.

Num mundo em que a lógica da comunicação - e com ela a opinião pública - exigem soluções de curto prazo, o político que está no governo termina entrando no jogo para responder dentro daquela lógica. Em geral, o senso comum confunde o momento da transição com o novo ciclo. Na verdade, a natureza dele será afirmada em períodos mais ou menos longos e, quando as forças políticas que lideram este processo se afundam na mesma confusão, perdem a capacidade de intervir e influenciar a natureza efetiva do novo ciclo. A supremacia de um grupo político pode se manifestar de duas maneiras: como dominação ou como direção intelectual e moral. No primeiro caso, o faz pela força; no segundo, pela penetração de suas idéias junto à opinião pública. A sociologia política diz que há três elementos constituintes num partido político: uma opinião difusa de pessoas que atendem a liderança dele; a coesão dada pela cúpula dirigente e uma instância intermediária que articula os outros dois. Mas o que garante a sua vida e a sua liderança é o segundo elemento.

A redemocratização brasileira é um ciclo de longo prazo em seu amadurecimento. Até porque se deu por etapas e dura há 31 anos. Começa com o acesso à TV, em 1976, com a anistia, em 1979, segue com a eleição dos governadores, em 1982, dos prefeitos das capitais, em 1985, com a Assembléia Constituinte, de 87 a 88, prossegue com a eleição para presidente, em 89, passa pelo teste das instituições no afastamento do presidente, em 92, e testa os consensos que caracterizam as democracias, como a reforma do estado, uma economia mais aberta e a responsabilidade monetária e fiscal de 90 a 98. Chega, finalmente, à vitória eleitoral do PT, em 2002. Este entendeu este momento como a abertura de um novo ciclo, embora não soubesse bem o que era.

Na verdade, a incorporação do PT ao governo foi a mostra final da solidez das instituições democráticas. Neste sentido, o governo do PT significa o fim deste longo ciclo de 31 anos de democratização, significa a sua maturidade. Quando se tornou governo é que o PT se deu conta de que navegava no mesmo ciclo anterior. Isso levou, de um lado, à crise interna daquilo que se chama de esquerda do PT e, de outro, à sensação de insuficiência de tempo, sentida pelo núcleo do partido que dirige o governo. Por isso, transmutou seu projeto de governo em projeto de poder, abandonando o projeto de direção, que vinha marcado pelas idéias que lastrearam sua postura de oposição, e buscando construir um projeto de dominação. Instrumentos usados para isso foram o abuso da propaganda e a submissão do Poder Legislativo, através da compra de lealdade num esquema entre forças heterogêneas: o tal mensalão.

O projeto de dominação do PT vinha facilitado pelo histórico descolamento entre representantes e representados, pela característica de partidos parlamentares e pelo debilitamento da federação. A dança dos parlamentares patrocinada pelo governo federal é exemplo disso. Recentemente, a decisão do presidente Lula de pactuar com deputados e senadores, passando por cima da estrutura partidária formal do PMDB e de seus governadores, reforça aquela característica e demonstra o desprezo pela federação. Lembro que república e presidencialismo não são cláusulas pétreas da Constituição Brasileira, até porque foram submetidas a plebiscito 10 anos atrás. Mas a Federação o é. Em países continentais, a federação é condição da democracia. O estilhaçamento do esquema de dominação implantado pelo PT era uma missa anunciada. A questão era saber se durava até a eleição de 2006. Ter implodido antes é uma boa notícia. O que seria um segundo governo do PT-Lula atrelado a esta máquina de dominação, cujo combustível é um triplo atropelamento: dos partidos, da federação e da ética pública? Afloraria a natureza autoritária de seu núcleo dirigente? Aliás, este desmanchou-se com o mensalão, o que altera a natureza do próximo congresso do partido, que será de reconstrução.

Mas se esta é uma boa noticia, os fatos não deixam de trazer preocupação. Se estamos concluindo este longo ciclo de democratização à brasileira, o fato do PT ter chegado ao governo apenas no final iludiu os que pensavam estar iniciando um novo ciclo, distraindo os intelectuais e os dirigentes políticos. Desta forma, um ciclo se encerra sem que se tenha sinais da formação de outro ciclo e sem impacto de opinião pública. Esta crise não traz nela as idéias que a negam, não revela os novos discursos, não identifica as forças de direção. Neste sentido, é uma crise de direção. E que não chega às ruas. Pior, pois chega como sensação de marasmo. Os intelectuais estão perplexos, senão deprimidos.

Santa Crise, pois abre nossos olhos a este processo, ao atraso por não termos nos pensado num fim de ciclo. Santa por ter exposto as vísceras mais podres do estado patrimonial brasileiro. Por ter aberto às forças políticas - todas - a oportunidade, e a exigência, de serem partidos. Por ter mostrado ao Estado a necessidade de uma reforma para dentro. Por ter revelado à Federação a possibilidade de ser repactuada. E por permitir que as novas idéias resultantes sejam apropriadas como opinião pública, aproximando política e povo, representantes e representados. Os intelectuais precisam sair da perplexidade desfulanizando os fatos. Neste quadro, os líderes políticos, num momento de clara entressafra, precisam se renovar e renovarem suas idéias e estratégias. Grave mesmo teria sido se o gatilho não tivesse sido disparado, a partir da fagulha das imagens daquele batedor de carteira dos Correios.

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