Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 27, 2005

Lula e a “renúncia” de Jango Por Reinaldo Azevedo

PRIMEIRA LEITURA

Uma pequena confusão circulou ontem no noticiário decorrente de uma afirmação feita por Lula e acabou tomando corpo depois de uma nota postada pelo prefeito do Rio, Cesar Maia, em seu blog. O presidente afirmou que não cometeria os erros de antecessores seus como Getúlio Vargas, Jânio Quadros ou João Goulart. Getúlio se matou, Jânio renunciou, e Jango, como se sabe, foi derrubado por um golpe de Estado. Mas, segundo Lula, ele também "renunciou".

Primeira Leitura acusou o erro do presidente, e um nosso leitor chegou a enviar um e-mail justamente com o que lera no blog de Maia, a saber: "O que posso dizer é que Brizola — que estava com Jango no Rio Grande do Sul antes de saírem para o exílio — testemunhava que o ato de renúncia foi formalizado por Jango (contra a opinião dele). E que portanto foi renúncia mesmo. Pode ser que Lula tivesse ouvido o Brizola narrar este fato pois fez campanha com ele em 1998."

Maia é um homem inteligente. Mas, desta vez, está errado na história e no conceito, embora tenha ajudado a elucidar, talvez sem perceber, a especiosa afirmação feita por Lula — e, aí sim, quem sabe?, sob a inspiração de Brizola. Bem, suicídio e renúncia, como sabemos, são atos unilaterais e só dependem da vontade de quem pratica uma coisa ou outra. O indivíduo é, a um só tempo, agente e paciente da ação. São, de algum modo, similares, embora um deles não deixe tempo para arrependimentos. Já o golpe depende da vontade de quem dá, não de quem sofre. O protagonista perde o direito de conduzir a ação. Conceitualmente falando, se admitirmos que Jango renunciou, estamos dizendo que poderia, se quisesse, não ter renunciado e permanecido no cargo. Não podia.

Quando o movimento militar tem início, em 31 de março de 1964, Jango estava no Rio. Segue para Brasília no da 1º porque intenta desfazer o ultimato para a sua renúncia, a intenção inicial dos golpistas. Vê que havia perdido apoio militar e vai para Porto Alegre, de onde, então, comandaria a contra-ataque. Waldir Pires, que era consultor-geral da República, mais ou menos o que é hoje, redige um comunicado ao Senado afirmando a presença do presidente em solo pátrio. O documento é ignorado pelo presidente da Casa, Auro de Moura Andrade, que declara o cargo vago. Já era o início da madrugada de 2 de abril.

Brizola achava que Jango deveria ter resistido? Ah, bom, isso é outra coisa. Considerava que sua decisão correspondia a uma espécie de "renúncia"? Sim, isso é bem verdade. Nos 40 anos do golpe, em 1º e abril do ano passado, Brizola falou sobre o movimento na Assembléia Legislativa do Rio Grande do Sul. Leiam o que disse: "Na última reunião feita em Porto Alegre, o presidente João Goulart terminou dizendo que, para ele continuar no governo, iria ocorrer derramamento de sangue, então, optava por se retirar, e renunciou. Eu afirmo que o presidente João Goulart tinha condições de resistir. Existiam aviões armados prontos para decidir. Ele não deu a ordem. Só não saiu a resistência porque o presidente não só não quis derramamento de sangue como determinou aos generais que se desmobilizassem. Pediu a mim que tratasse de desmobilizar movimentos populares, a população (...) A impressão do presidente era de que ele iria para São Borja e, se houvesse condições políticas, voltaria."

A expectativa de Brizola, diga-se, não era diferente da dos generais que lideraram a deposição do presidente. Eles também apostavam que haveria confronto. Havia quem esperasse aos menos uns seis ou sete meses de focos de guerra civil, incluindo aí tropas leais a Jango. Quais? Inexistiam de fato. Era maluquice brizolista.

Vejam lá: Brizola claramente se refere a uma reunião posterior à declaração de vacância feita pelo presidente do Senado, o que, por si só, já seria evidência de que o golpe estava sendo "legalizado". Ainda que Jango tivesse formalizado uma renúncia posterior a tal ato, renunciava ao que já não tinha. O que me parece é que o sentido eventualmente problemático da fala de Lula não foi eficientemente destrinchado. E estamos falando de coisas que têm o seu perigo. E acho que estou certo. A fala de Lula, nesta sexta, em companhia de Ciro Gomes, o coronel mauricinho, me dá razão.

E, então, é preciso voltar à fala de Brizola. Nunca tive simpatia por ele — e memória eu só tenho depois de sua volta do exílio, é claro, que eu mal tinha saído das fraldas em 1964. Do que li, pouca coisa me agrada. Mas admiro gente corajosa. Brizola tinha pelo menos a ponta da botina num certo espírito épico, a nossa épica possível, bem entendido, meio caída e brega, mas vá lá. Era melhor do que estes porcalhões covardes que estão por aí.

Já conversei com contemporâneos seus, que viveram com ele aqueles dias, tanto de um lado como de outro. Ele queria mesmo ir para o pau. Se tivesse ido, o melhor é que tivesse sido derrotado — e aqui não vai simpatia pela ditadura que se seguiu. Mas a vitória de Jango numa eventual conflagração teria sido a vitória de outro autoritarismo, certamente mais sangrento. O presidente teve o bom senso de, ao menos daquela vez, não seguir um mau conselho. A suposição de que, do confronto, triunfaria a legalidade é uma sandice. Jango estava perto de (tentar) decretar o estado de sítio. As "forças populares" que lhe davam sustentação, como se viu, prescindiam de povo. Boa parte era formada por quadros da esquerda revolucionária ou do nacionalismo à moda brizolista. O mais democrata ali era o próprio Jango.

Bem, mas não é de 1964 propriamente que quero falar, e sim daquela declaração de Lula, que me parece trazer um sabor mais desagradável do que se pode inicialmente perceber. E se, pergunto eu, ele estiver querendo dizer que não fará como Jango, a saber: não evitará, se preciso for, o confronto, surfando, então, na ficção histórica, saída da cabeça de Brizola, de que o presidente só saiu porque quis, porque renunciou, porque não soube lutar? Pois eu acho que é isso o que Lula quis dizer. Por mais que quase sempre ganhe a aposta quem superestimar a sua ignorância, nesse caso em particular, talvez fosse conveniente pensar melhor.

É claro que a suposição, como boa parte das coisas hoje paridas no Planalto, é uma tolice sem fim. De comum com Jango, Lula só tem o amor pela desordem e pela descoordenação. Nada mais. Não conta com oposições que querem derrubá-lo (ao contrário; fingem-se de cegas, surdas e mudas para não terem de recorrer ao instrumento do impeachment); não há indisciplina militar (nem contra o governo nem a favor); não existem organizações da sociedade civil — das empresariais às religiosas — organizadas para tirá-lo do Palácio; não enfrenta a hostilidade norte-americana (embora Amorim merece um diplomático chute no traseiro). Nada. Se vier a ser alvo de um processo de impeachment, tudo há de se processar segundo a mais rigorosa observância da Lei e da Constituição. O Gregório Fortunato de Lula é uma legião.

Não sei, não. Tenho para mim que não foi só ignorância histórica o que Lula afirmou ontem. Acho que acenou com mais coisas e está dizendo que não aceitaria passivamente um processo de impeachment a exemplo de Jango, que "aceitou" um golpe de Estado (e, por isso, ele fala em "renúncia), como se ambas as coisas fossem equivalentes, e a mesma fosse a natureza das pressões que havia contra aquele presidente e das que há contra ele, Lula. O que vem a ser mais um absurdo.

Havia, sim, muitas acusações de roubalheira e bandalheira no governo de Jango. Mas, evidentemente, nada era comparável ao que vemos aí. As que chegavam próximas do presidente estavam relacionadas à desordem política. É correto afirmar que havia no antijanguismo um forte teor ideológico. O antilulismo já é mais próprio de quem consegue fazer conta.

Não estou, com isso, dizendo que Lula mandou um recado. Mas estou, sim, especulando que ele pode ter deixando escapar a franja de uma ficção política, que conduz a uma estratégia e remete a uma decisão eventualmente já tomada. Não aceitaria, nos limites do que prevê a lei, o impeachment sem promover ou deixar que promovessem uma onda de desordem. E este "ativismo" não se resumiria a instrumentos políticos de resistência. Há erros que ninguém tem o direito de cometer alegando ignorância. Mesmo quando se é Lula.

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