O GLOBO
Até que ponto o grande capitalismo brasileiro compactua com esta vasta rede de dinheiro ilegal que aparece agora na campanha de Lula a presidente da República? Suspeita-se que muito mais do que admitem os grandes empresários que gostam tanto de exibir discurso de estadista; pedindo reformas, transparência, accountability e ética na política.
Vejam-se dois casos: o Banco do Brasil e a Usiminas. O Banco do Brasil foi dirigido, na primeira parte do governo Lula, por um executivo conhecido, não ligado ao PT, com excelente reputação e que prometia aumentar a eficiência. Cássio Casseb viu ou não viu tudo o que aconteceu por lá? Tentei saber isso dele diretamente, mas não recebi respostas às minhas ligações.
Quando foi anunciada a criação do Banco Popular do Brasil, Cássio Casseb anunciou que seria uma instituição inteiramente à parte, independente do Banco do Brasil. Não foi o que aconteceu. Na publicidade, foi uma extensão, tanto que nem se deu ao trabalho de fazer licitação. A empresa de Marcos Valério ganhou a conta do novo banco. E esta semana, Ivan Guimarães disse que o dinheiro era simplesmente repassado para o Banco do Brasil para o pagamento da empresa de publicidade.
No caso da Usiminas, o presidente Rinaldo Campos Soares é outro conhecido executivo com reputação de sério e eficiente. Costuma fugir de qualquer entrevista à imprensa, sobre qualquer assunto. É nesse mesmo mutismo que se refugia agora para esconder o que não pode mais ser ignorado.
A Usiminas é uma empresa privada. Pertence a três dos maiores grupos nacionais — Votorantim, Camargo Corrêa e Bradesco. Tem capital aberto e, portanto, deve explicações à CVM e aos minoritários. Nos últimos dias, anunciou uma aliança estratégica com a Techint, da Argentina, para criar uma holding na área siderúrgica e assim se fortalecer no mundo globalizado, que exige grupos mais fortes. O que uma empresa assim, com tradição, visão estratégica e modernos métodos de gestão, faz no meio desta confusão? Até agora, ela não se explicou; fechou-se em copas, negou os fatos, mas não convenceu.
Difícil negar. Alguns políticos apareceram na lista de Marcos Valério e trataram de deixar claro que não faziam parte do valerioduto, mas haviam recebido dinheiro da Usiminas. Foi isso que fez, por exemplo, o deputado Roberto Brant, do PFL. O sócio de Marcos Valério, Cristiano Paz, confirmou que eram feitos, sim, pagamentos a políticos indicados pela Usiminas. O jornal "Valor Econômico" revelou um detalhe interessante na busca por elucidar um fato sobre o qual a empresa se nega a prestar os devidos esclarecimentos: que, desta forma, a diretoria da Usiminas queria evitar que os controladores fossem importunados pelos pedidos dos políticos.
Assim, os três grandes grupos controladores não foram importunados, continuam em sua redoma, enquanto uma empresa controlada mandava dinheiro para os políticos fingindo ser pagamento à empresa de publicidade. Esse dinheiro financiava os políticos. Não era dinheiro não contabilizado, mas ele simulava uma operação para encobrir outra. Em suma, os acionistas minoritários eram enganados e a lei eleitoral, fraudada. Tudo isso por empresas legais, grupos empresariais importantes e tradicionais do país. O que leva o setor formal brasileiro a ter tantas conexões com o mundo das sombras?
É essa tolerância com o ilegal que explica várias mazelas brasileiras e não apenas o caixa dois de campanha política. Explica o trabalho escravo, o uso de madeira extraída ilegalmente, o crescimento do setor informal, o caixa dois. Explica a declaração do presidente da República, em Paris, afirmando que isso é feito "sistematicamente" no país. O que muita gente não se dá conta é que, com alguns pecadilhos, vão sendo lavados, ao longo da cadeia produtiva, vários ilícitos.
Existe forma de doar recursos para as campanhas políticas legalmente, mas muitas empresas oferecem aos políticos dinheiro por fora. Isso porque já existe um dinheiro por fora resultado de sonegação de impostos, subfaturamento, subdeclaração. Existe forma legal de remeter recursos para o exterior e ter uma conta corrente em outro país. Tudo apenas precisa ser declarado. Mesmo assim, os serviços dos doleiros são largamente usados para remessas escondidas para contas não declaradas.
Algumas pessoas pensam, diante desses hábitos de empresários e políticos brasileiros, que o Brasil é assim mesmo. Um observador da cena fiscal brasileira, ex-secretário da Receita, Everardo Maciel, acha que o Brasil não é um país em que a corrupção e a sonegação sejam endêmicas:
— Temos um padrão de sonegação bem acima dos países desenvolvidos, mas não somos um Paraguai — disse ele.
Everardo fez contas com base na arrecadação da CPMF. Pegou a base de calculo da CPMF, segregou os empréstimos e operações financeiras, deixando apenas as transações envolvendo pagamentos. E compensou com outras bases de recolhimento como o Imposto de Renda:
— Cheguei à conclusão que um terço do recolhimento de CPMF não tinha correspondência com outras bases de arrecadação tributária, o que significa que pode ser dinheiro de sonegação, elisão fiscal, suspensão de pagamentos por ordem judicial ou renúncia fiscal.
Este é o padrão em vários países, como alguns dos vizinhos do Brasil, mas o problema é o descompasso entre o discurso de empresários — cobrando combate à corrupção — e a prática diária de conivência com pequenos e grandes ilícitos. Governo nenhum é corrupto sozinho. Esse é um negócio entre o setor público e o setor privado.
Entrevista:O Estado inteligente
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