Entrevista:O Estado inteligente

sábado, agosto 27, 2005

André Petry Nós, o vexame mundial

VEJA

"Uma parte da elite nacional fica
mais preocupada com a falta de
vaga nos presídios do que com
a falta de vaga na indústria"

A ONU acaba de lançar novo relatório sobre a situação social no mundo. De cara, traz uma notícia incômoda. Afirma que crescimento econômico não reduz, por si só, a desigualdade social. Diz que, se um país cresce, mas não tem programas específicos de combate à desigualdade, os frutos do crescimento acabam na mão dos ricos – e isso, em vez de reduzir, aumenta a desigualdade. A ONU não elege o campeão mundial do mau exemplo. Mas, como também não esconde os dados sobre o Brasil, fica claro que o mau exemplo mundial, de novo, somos nós mesmos.

Debulhando os números do relatório, fica-se sabendo que o Brasil é um recordista em desigualdade de renda. Os mais ricos ganham 32 vezes mais que os mais pobres – no Uruguai, essa diferença de renda é de nove vezes. Nossa indecência quer dizer o seguinte: se o pobre ganha 200 reais, o rico ganhará 6.400.

(Dos números à realidade: no último dia 16, cumprindo ordem judicial, a polícia expulsou 300 sem-teto de um prédio de cinco andares no centro de São Paulo. Usou bombas de gás lacrimogêneo e spray de pimenta. Entre os 300 sem-teto havia 110 crianças. Houve feridos e presos, mas a expulsão foi completada. No Brasil da desigualdade, em que uns têm um edifício e outros não têm um teto sequer, a coisa é assim: jogam-se 110 crianças na rua, e isso significa "fazer justiça".)

O relatório da ONU reafirma que uma das chagas mundiais é a informalidade – gente que, além de não ter carteira de trabalho assinada, não tem direito nem acesso a quase nada. No Brasil, os informais já são maioria: 56%.

(Dos números à realidade: no fim de maio, no centro de São Paulo, aconteceu o pior confronto do ano – até agora – entre policiais e camelôs. Oito guardas civis ficaram feridos. Três ambulantes foram presos. Houve de tudo: coquetéis molotov, bombas caseiras, rojões, pedras, garrafas. Camelôs protestam, são agredidos pela polícia, vivem sendo expulsos. Ninguém é camelô porque quer, mas entre nós é assim: elimina-se, a cacetadas se for preciso, o único meio de sustento dos informais, e isso é "manter a ordem".)

A ONU aponta para outro drama mundial da desigualdade – o desemprego. No mundo, há 186 milhões de desempregados. No Brasil, a taxa oficial está em cerca de 10%. O desemprego é sempre mais alto entre os jovens e é uma das explicações para o aumento da criminalidade.

(Dos números à realidade: entre 1980 e 2000, um pouco mais de 2 milhões de pessoas morreram de causas violentas no Brasil – homicídio, suicídio, acidente. Nessas duas décadas, o país teve crescimento medíocre, taxa de desemprego crescente e criminalidade galopante. Uma parte da elite nacional, daquele pedaço que ganha 32 vezes mais que os pobres, fica mais preocupada com a falta de vaga nos presídios do que com a falta de vaga na indústria.)

A corrupção é a derrota mais espetacular do governo de Lula. A outra derrota, acachapante e devastadora, mas que carece do espalhafato cáustico do mensalão, é não ter tomado uma única providência significativa para alterar o quadro pornográfico da concentração de renda.

Nós nos encontraremos, caro leitor, no próximo relatório da ONU. Com as mesmas notícias. Provavelmente pioradas.

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