FOLHA DE S PAULO
Marx completou Hegel na obra do "18 de Brumário de Luís Bonaparte", ao observar que os fatos e personagens de grande importância na história do mundo ocorrem duas vezes: a primeira vez como tragédia; a segunda, como farsa.
Lula não repetirá Getúlio, Jânio nem Jango. Há consenso em relação a esse ponto do discurso do presidente Lula na reunião do Conselho de Desenvolvimento Econômico e Social da última quinta-feira. Aqueles três presidentes enfrentaram condições econômicas mais desfavoráveis do que aquelas recebidas pelo governo Lula e sofreram as conseqüências de instituições democráticas mais frágeis do que na atualidade.
Getúlio Vargas enfrentou sérias dificuldades econômicas no período 1950-54. A inflação atingiu 22% no ano de sua morte, em 1954. Chegou a 44% em 1961, quando Jânio renunciou; e a 86% em 1964, quando Jango foi deposto pelos militares. A restrição nas contas externas começava a se manifestar em meados dos anos 50 e levou a uma crise de endividamento no início dos anos 60.
Lula não lembra Getúlio, Jânio ou Jango em seus discursos. Registre-se uma curiosidade no livro de Bezerra Bonfim ("Palavra de Presidente") sobre os discursos de posse dos presidentes da era republicana. Getúlio utilizou 1.185 palavras em seu discurso, contra 649 de Jânio e 969 de Jango. Lula usou mais do que a soma dos três: 3.926.
Getúlio e Jango não abordaram o tema da corrupção em seus pronunciamentos de posse. Nem mesmo Jânio, que brandia a vassoura contra a corrupção, antecipando a caça aos marajás de Collor, tratou do assunto. Lula dedicou três parágrafos à questão. Aliás, ninguém poderia discordar da promessa feita em meio à festa da posse: "O combate à corrupção e a defesa da ética no trato da coisa pública serão objetivos centrais e permanentes do meu governo. É preciso enfrentar com determinação e derrotar a verdadeira cultura da impunidade que prevalece em certos setores da vida pública".
O contraste entre as promessas de campanha e as realizações do governo Lula é chocante. Talvez Lula devesse ter prestado atenção na seguinte passagem do discurso de posse de Vargas: "Não vos quero enganar com projetos ambiciosos e programas grandiosos, imaginativos e irrealizáveis".
É nesse sentido que a comparação com o governo Juscelino Kubitschek é ainda mais inadequada. O governo JK não foi perfeito, como querem seus adoradores. Jânio reclamou com mais razão do que Lula da "herança maldita" em termos de obrigações de curto prazo herdadas de seu antecessor.
Mas, apesar dos problemas de estabilização, o governo JK representou marco no processo de desenvolvimento do país. Pode-se discordar das prioridades ou da execução do Plano de Metas de JK, mas ninguém poderia afirmar que não havia um projeto de governo. Verificou-se notável diversificação da indústria e da economia, aumento de investimentos e criação de novas oportunidades de expansão. Em contraste, o governo Lula até agora se limitou a manter estáveis os indicadores de curto prazo a um custo de um juro real de 14%. A economia deverá crescer a uma média inferior a 3% ao ano em 2003/05, em um dos melhores momentos da economia mundial do pós-guerra.
A comparação com JK lembra episódio da campanha presidencial para os EUA de 1988. Na ocasião, concorriam Bush (pai) e Dan Quayle, pelos republicanos, contra Dukakis e Lloyd Bentsen, pelos democratas. No debate entre os candidatos à Vice-Presidência, Dan Quayle tentava sem muito sucesso argumentar que teria condições de ocupar a Presidência dos EUA na eventualidade de vacância do cargo. O fato de ser jovem e inexperiente em funções executivas não ajudava. Em determinado momento, lembrou que tinha a mesma idade de John F. Kennedy em 1960.
O velho senador Bentsen deixou Quayle à vontade para evocar a figura mítica de Kennedy para então explicar ao aprendiz: "Senador, eu servi a Jack Kennedy. Eu conheço Jack Kennedy. Jack Kennedy era meu amigo". E, depois de uma pausa estudada, desferiu o golpe mortal: "You are no Jack Kennedy!" (você não é Jack Kennedy). Bush venceu com ampla maioria sobre Dukakis naquele ano. Mas nunca mais se ouviu falar de Dan Quayle.
Entrevista:O Estado inteligente
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