Simples e brilhante a auto-crítica de Marcelo Coelho hoje na Folha: "Pior do que o silêncio dos intelectuais é a preguiça dos intelectuais. Ser de esquerda ajuda nessa preguiça: fala-se muito (até demais) para um público que não precisa de muito para se convencer. Até onde sei, entretanto, na direita as coisas não são muito melhores nesse aspecto."
É isso: quem precisa de intelectuais só para enunciar certezas que a gente já tem? Isso os sacerdotes fazem melhor há mais tempo. Em tempos de incerteza, precisamos de intelectuais principalmente para fazer perguntas novas e incômodas. Tomara que a queda do muro do PT bote pilha no debate e ajude a pôr na praça uma safra de intelectuais mais questionadores e diligentes.
FOLHA DE S PAULO
MARCELO COELHO
Os intelectuais em tempos de CPI
Participo , nesta semana, de um ciclo de conferências intitulado "O Silêncio dos Intelectuais". O evento anda provocando alguma excitação: cada vez que o menciono, noto um brilho nos olhos do interlocutor. Já apareceram artigos a respeito do assunto nas revistas semanais e tive até de dar entrevista numa emissora de rádio, coisa que nunca me acontece.
Esse interesse se deve a questões bem diferentes, creio, das que Adauto Novaes tinha em mente quando começou a organizar o ciclo, já faz algum tempo. Tratava-se de discutir -no ano do centenário de Jean-Paul Sartre- o relativo declínio na importância das famosas figuras de "intelectual público" que marcaram o século 20.
Claro que o problema tem raízes na crise do pensamento de esquerda, que se prolonga há vários anos -ou décadas, se quisermos. Outros fatores, não diretamente políticos, como o predomínio da linguagem televisiva sobre o texto escrito, poderiam também ser discutidos nesse contexto.
Na conjuntura brasileira, entretanto, a idéia do "silêncio dos intelectuais" mobiliza perguntas mais fortes e urgentes. Um espírito de cobrança, quase de CPI, está no ar. Eis o questionário implícito, esperando resposta dos depoentes e acusados de praxe.
"Vossa Senhoria se considera de esquerda?" "Sendo de esquerda, apoiou ou apóia o Partido dos Trabalhadores?" "Era de seu conhecimento o que ocorria nas entranhas do partido?" "Em caso afirmativo, Vossa Senhoria justifica, aprova ou explica o presente escândalo?" "Tem alguma responsabilidade sobre ele?" "Vossa Senhoria condena o que aconteceu?"
"Se condena, por que então se manteve em silêncio por tanto tempo?" "Se disse alguma coisa, por que o fez tão timidamente?" "Não se considera instado a fazer uma autocrítica mais clara?"
Uma pausa. Em seguida, vêm as perguntas pessoais: "Vossa Senhoria se considera arrogante?" "Acha que traiu suas convicções?" "Como pôde apoiar um candidato que se jacta da própria ignorância?" "Tirou ou tira alguma vantagem pessoal de suas ligações com o PT?" "Que pretende fazer de agora em diante?".
A fraseologia é inquisitorial e caricata, mas não creio que se possa negar pertinência ao questionamento. Cada intelectual de esquerda vai tratando de respondê-lo a seu modo, e todas as diferenças imagináveis aparecem ao longo do processo.
Mesmo os silêncios são de variada natureza. Houve quem nada tenha dito a respeito de Delúbio e José Dirceu, porque já não tinha mais nada a dizer nem a ver com o PT e com o governo. Alguns petistas históricos já tinham se desvinculado -ruidosamente até- de qualquer fidelidade a Lula.
Sem dúvida, adotar um silêncio "estratégico", orientado pelo cálculo ou pela submissão política, equivale a abandonar o papel de intelectual, substituindo-o pelo de soldado, de funcionário, de sacerdote ou de militante. Quem se cala por "prudência científica", por repugnância ao corre-corre desesperado que se dá na superfície do formigueiro ou por embaraço pessoal pode agir de forma respeitável, mas não deixa de suspender provisoriamente seu papel público de intelectual -e termina arcando com certo custo por isso.
As distinções entre um caso e outro podem ser sutis, mas quem é que gosta de sutileza em qualquer momento de conflito? A tendência é substituir o pensamento pela atividade mais fácil da rotulação moral. Poucos se recusaram a esse prazer nos tempos em que pichávamos o governo FHC.
Agora, nenhuma resposta, nenhum artigo de intelectual (petista ou ex-petista) é capaz de satisfazer a parcela da opinião pública que deseja um mea-culpa completo. Entenda-se por mea-culpa completo a seguinte frase: "Eu era de esquerda, errei, agora sou de direita".
É como o pronunciamento de Lula pela televisão: sempre há motivos para considerá-lo insatisfatório. "Ele não citou nomes." Mas deveria? "Ele foi vago." Acho também que foi. Mas a única declaração capaz de silenciar todos os críticos seria esta, acho que impensável a esta altura: "Roubei, deixei roubar, renuncio hoje mesmo à Presidência".
Se for para esperar uma declaração nesses termos, o silêncio dos intelectuais naturalmente vai continuar por muito tempo. Mas isso não quer dizer que ninguém deva dar satisfações pela complacência com o PT nestes anos todos.
De minha parte, faço um mea-culpa aos leitores, ainda que muitos possam julgá-lo insatisfatório. Fui mais simpático ao PT do que a qualquer outro partido brasileiro. Sempre achei que havia preconceito e perseguição exagerada contra Lula; por isso muitas vezes tratei suas tolices com exagerada simpatia. Escrevi mais artigos contra o governo FHC do que contra o governo Lula, embora desde o começo tenha discordado de ambos. Arrependo-me de meu "bom-mocismo" com relação ao PT.
Mas todas essas coisas, bem ou mal, estão na esfera das minhas opiniões pessoais, e creio tê-las apresentado desse modo -como pontos de vista subjetivos- nos artigos que escrevi.
O erro mais sério consiste em outra coisa. Minha simpatia pelo PT e pela esquerda levou-me muitas vezes ao comodismo mental. "Essa turma é legal, foi perseguida, não lucra com o sistema, logo deve estar correta. Os outros apenas defendem seus interesses."
Pior do que o silêncio dos intelectuais é a preguiça dos intelectuais. Ser de esquerda ajuda nessa preguiça: fala-se muito (até demais) para um público que não precisa de muito para se convencer. Até onde sei, entretanto, na direita as coisas não são muito melhores nesse aspecto.
É isso: quem precisa de intelectuais só para enunciar certezas que a gente já tem? Isso os sacerdotes fazem melhor há mais tempo. Em tempos de incerteza, precisamos de intelectuais principalmente para fazer perguntas novas e incômodas. Tomara que a queda do muro do PT bote pilha no debate e ajude a pôr na praça uma safra de intelectuais mais questionadores e diligentes.
FOLHA DE S PAULO
MARCELO COELHO
Os intelectuais em tempos de CPI
Participo , nesta semana, de um ciclo de conferências intitulado "O Silêncio dos Intelectuais". O evento anda provocando alguma excitação: cada vez que o menciono, noto um brilho nos olhos do interlocutor. Já apareceram artigos a respeito do assunto nas revistas semanais e tive até de dar entrevista numa emissora de rádio, coisa que nunca me acontece.
Esse interesse se deve a questões bem diferentes, creio, das que Adauto Novaes tinha em mente quando começou a organizar o ciclo, já faz algum tempo. Tratava-se de discutir -no ano do centenário de Jean-Paul Sartre- o relativo declínio na importância das famosas figuras de "intelectual público" que marcaram o século 20.
Claro que o problema tem raízes na crise do pensamento de esquerda, que se prolonga há vários anos -ou décadas, se quisermos. Outros fatores, não diretamente políticos, como o predomínio da linguagem televisiva sobre o texto escrito, poderiam também ser discutidos nesse contexto.
Na conjuntura brasileira, entretanto, a idéia do "silêncio dos intelectuais" mobiliza perguntas mais fortes e urgentes. Um espírito de cobrança, quase de CPI, está no ar. Eis o questionário implícito, esperando resposta dos depoentes e acusados de praxe.
"Vossa Senhoria se considera de esquerda?" "Sendo de esquerda, apoiou ou apóia o Partido dos Trabalhadores?" "Era de seu conhecimento o que ocorria nas entranhas do partido?" "Em caso afirmativo, Vossa Senhoria justifica, aprova ou explica o presente escândalo?" "Tem alguma responsabilidade sobre ele?" "Vossa Senhoria condena o que aconteceu?"
"Se condena, por que então se manteve em silêncio por tanto tempo?" "Se disse alguma coisa, por que o fez tão timidamente?" "Não se considera instado a fazer uma autocrítica mais clara?"
Uma pausa. Em seguida, vêm as perguntas pessoais: "Vossa Senhoria se considera arrogante?" "Acha que traiu suas convicções?" "Como pôde apoiar um candidato que se jacta da própria ignorância?" "Tirou ou tira alguma vantagem pessoal de suas ligações com o PT?" "Que pretende fazer de agora em diante?".
A fraseologia é inquisitorial e caricata, mas não creio que se possa negar pertinência ao questionamento. Cada intelectual de esquerda vai tratando de respondê-lo a seu modo, e todas as diferenças imagináveis aparecem ao longo do processo.
Mesmo os silêncios são de variada natureza. Houve quem nada tenha dito a respeito de Delúbio e José Dirceu, porque já não tinha mais nada a dizer nem a ver com o PT e com o governo. Alguns petistas históricos já tinham se desvinculado -ruidosamente até- de qualquer fidelidade a Lula.
Sem dúvida, adotar um silêncio "estratégico", orientado pelo cálculo ou pela submissão política, equivale a abandonar o papel de intelectual, substituindo-o pelo de soldado, de funcionário, de sacerdote ou de militante. Quem se cala por "prudência científica", por repugnância ao corre-corre desesperado que se dá na superfície do formigueiro ou por embaraço pessoal pode agir de forma respeitável, mas não deixa de suspender provisoriamente seu papel público de intelectual -e termina arcando com certo custo por isso.
As distinções entre um caso e outro podem ser sutis, mas quem é que gosta de sutileza em qualquer momento de conflito? A tendência é substituir o pensamento pela atividade mais fácil da rotulação moral. Poucos se recusaram a esse prazer nos tempos em que pichávamos o governo FHC.
Agora, nenhuma resposta, nenhum artigo de intelectual (petista ou ex-petista) é capaz de satisfazer a parcela da opinião pública que deseja um mea-culpa completo. Entenda-se por mea-culpa completo a seguinte frase: "Eu era de esquerda, errei, agora sou de direita".
É como o pronunciamento de Lula pela televisão: sempre há motivos para considerá-lo insatisfatório. "Ele não citou nomes." Mas deveria? "Ele foi vago." Acho também que foi. Mas a única declaração capaz de silenciar todos os críticos seria esta, acho que impensável a esta altura: "Roubei, deixei roubar, renuncio hoje mesmo à Presidência".
Se for para esperar uma declaração nesses termos, o silêncio dos intelectuais naturalmente vai continuar por muito tempo. Mas isso não quer dizer que ninguém deva dar satisfações pela complacência com o PT nestes anos todos.
De minha parte, faço um mea-culpa aos leitores, ainda que muitos possam julgá-lo insatisfatório. Fui mais simpático ao PT do que a qualquer outro partido brasileiro. Sempre achei que havia preconceito e perseguição exagerada contra Lula; por isso muitas vezes tratei suas tolices com exagerada simpatia. Escrevi mais artigos contra o governo FHC do que contra o governo Lula, embora desde o começo tenha discordado de ambos. Arrependo-me de meu "bom-mocismo" com relação ao PT.
Mas todas essas coisas, bem ou mal, estão na esfera das minhas opiniões pessoais, e creio tê-las apresentado desse modo -como pontos de vista subjetivos- nos artigos que escrevi.
O erro mais sério consiste em outra coisa. Minha simpatia pelo PT e pela esquerda levou-me muitas vezes ao comodismo mental. "Essa turma é legal, foi perseguida, não lucra com o sistema, logo deve estar correta. Os outros apenas defendem seus interesses."
Pior do que o silêncio dos intelectuais é a preguiça dos intelectuais. Ser de esquerda ajuda nessa preguiça: fala-se muito (até demais) para um público que não precisa de muito para se convencer. Até onde sei, entretanto, na direita as coisas não são muito melhores nesse aspecto.