Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 28, 2005

Lúcia Hippolito : O sagrado direito de mudar de idéia

o estado de s paulo



É curiosa esta insistência de certaspessoas para que o presidente Lula desista de ser candidato à reeleiçãoem2006. A'sugestão caridosa' parte de políticos, de setores da iniciativa privada - incluídas aí algumas associações de classe - e do mercado financeiro. A argumentação é simples: se desistisse da candidatura, Lula daria uma poderosa contribuição para o desarmamento dos espíritos e para baixar a temperatura da crise. Seria umimportante sinal paraa articulação de uma saída negociada para esta interminável crise política. Acontecequeé líquidoecertoo direitodeLulaàcandidatura.AConstituição brasileira confere ao governante o direito de tentar se reeleger umavez.Enãosepoderenunciardefinitivamente a um direito.

Para dar um exemplo: pelas leis brasileiras, um herdeiro pode renunciar a seu quinhão, assinar um documentoaesserespeitoe,aqualquer momento, simplesmente mudar de idéia, dando o dito pelo não dito. Quem tem um direito e dele abre mão, não o perde, pois pode sempre voltar atrás.

O instituto da reeleição é um arranjo feito entre forças políticas, e varia muito de um país para outro.

Nos Estados Unidos,matriz do presidencialismo, o presidente podia reeleger-se quantas vezes conseguisse - e o eleitorado concordasse. Franklin D. Roosevelt elegeuse quatro vezes, entre 1932 e 1944. Foi justamente depois de sua morte que o Congresso americano votou a 22.ª emenda, limitando a dois mandatos subseqüentes. Uma vez reeleito, e tendo cumprido seu segundo mandato, nunca mais o presidente americano pode candidatar-se a voltar à Casa Branca.

No México, logo ao Sul, o mandato do presidente é de seis anos, sem direito à reeleição. Já no Togo, o mandato é de sete anos com reeleição; como também no Gabão, que tanta admiração despertou recentemente no presidente Lula - aliás, no Gabão o presidente está no poder já mais de 30 anos. Na França da 5.ª República o mandato era de sete anos, mas encurtou para cinco, com direito a quantas reeleições o eleitorado agüentar.

NoBrasil,como sabemos,aConstituição determina um mandato de quatro anos, com direito a uma reeleição para mandato subseqüente. Diferentemente dos Estados Unidos, um ex-presidente brasileiro, mesmo reeleito e tendo cumprido dois mandatos, pode tentar candidatar-se novamente à Presidência, bastando apenas ficar quatro anos fora do Palácio do Planalto.

Na prática, a reeleição significa, em muitos países, um mandato de oito a dez anos, com um plebiscito no meio, quando o eleitorado julga as ações do governante e decide se deseja ou não confiar-lhe um novo mandato.

Opresidente Lula temtodo o direito de ter as ações de seu governo julgadas pelo eleitorado brasileiro. Querer forçá-lo a desistir como demonstração de boa vontade para a articulação de uma saída politicamente negociada para a crise é uma das muitas formas de golpe.

Lula pode muito bem assinar quantos papéis quiser, renunciando à candidatura à Presidência em 2006. Pode fazer juras em praça pública. E mais adiante, pode dizer que a conjuntura mudou, que o povo pediu, que pensou melhor, enfim,quemudou de idéiae écandidatíssimo. Como a sociedade vai julgar esta mudança, não é problema constitucional,masdeentendimento político entre Lula e o eleitorado. Mas não se pode pedir a ele que renuncie ao direito de se candidatar. Da mesma maneira, o então prefeitode Ribeirão Preto, Antonio Palocci, assinou um documento comprometendo-se a cumprir até o fim o seu mandato de prefeito - e depois, alegando alteração no quadro político, rasgou o documento, com a ajuda do presidente Lula, quando assumiu o Ministério da Fazenda.

Afinal, tinha sido chamado para exercer uma das mais importantes funções da República, num governo que ele ajudara a eleger, como coordenador da campanha de Lula. Ou seja, Palocci não quis renunciaraodireito de ser ministroda Fazenda.

Quando José Serra, na campanhade 2004, assinou um documento parecido, comprometendo-se a cumprir até o fim o mandato, caso fosse eleito prefeito de São Paulo, alguém poderia imaginar que, menos de um ano depois, o País estaria vivendo uma crise política das proporções e das implicações da atual? E que talvez Serra venha a ser levado a ser candidato à Presidência da República nas eleições do ano que vem? É seu direito candidatar-se a qualquer cargo eletivo,uma vez que não há impedimento constitucional. Como vai explicar-se ao eleitorado paulistano, é seu problema. Mas não se pode pedir a Serra que renuncie ao direito de se candidatar à Presidência. Aliás, vamos combinar que, nas próximas eleições, ninguém pede mais a candidato nenhum que assinequalquerdocumentocomprometendo-seacumprirum mandatoparao qualainda sequerfoieleito? Documento que muito provavelmente o governante será levado a rasgar, por esta ou aquela circunstância? O eleitorado fica poupado de decepções e o candidato fica poupado de pagar mico em praça pública. ?



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