O ESTADO DE S PAULO
Qualquer que seja o destino da crise política, pelo menos um dos seus resultados já está claro: o fim do Partido dos Trabalhadores. Ele pode até sobreviver, inclusive com o mesmo nome. Mas de maneira alguma será o que foi até há alguns meses, o maior partido de trabalhadores de um país democrático. O fim do PT tem significado internacional. É um fim que se inscreve numa longa história de lutas operárias, iniciada com a publicação do Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, em 1848. Nessa tradição estão os partidos socialdemocratas e comunistas. A periodização da experiência dos partidos de trabalhadores é tema de debate da esquerda há décadas. Mas a maioria dos seus historiadores situa no início das duas guerras mundiais do século 20 os momentos de virada e explosão. Os partidos socialdemocratas, unificados na Internacional Socialista, desde a sua fundação tiveram uma política antinacionalista. Com a eclosão da 1ª Guerra Mundial, deram uma guinada súbita: em cada país, votaram nos parlamentos nacionais a aprovação de créditos de guerra. Em vez de defenderem os trabalhadores internacionalmente, aderiram à política das uniões nacionais. Voltaram à tona depois da guerra, mas nunca mais foram os mesmos. Abandonaram a perspectiva socialista e adotaram uma política de manutenção das estruturas e do sistema. Da debacle da Internacional Socialista surgiu outra força, a comunista. Assim que os socialdemocratas apoiaram as potências européias no início da 1ª Grande Guerra, Lenin defendeu a criação de novos partidos. Com a vitória dos bolcheviques na Rússia, em 1917, os PCs vicejaram em todo o mundo. Há duas datas que marcam o fim da experiência bolchevique e sua degeneração, o stalinismo. A primeira é 1933, quando o Partido Comunista da Alemanha elege a socialdemocracia como seu inimigo principal, deixando o nazismo em segundo plano. Com o triunfo do nazismo, o PC alemão é esfacelado - e nunca mais se recupera. A segunda data é 1989, quando o povo alemão volta a se unificar, derrubando o Muro de Berlim, insurgindo-se contra o que defendiam tanto o governo da Alemanha Ocidental quanto o da República Democrática Alemã. A queda do Muro abre caminho para o fim do stalinismo na Europa. Ou seja, o fim de partidos de origem operária não é absoluto. A socialdemocracia ressurgiu depois da 1ª Guerra Mundial. Chegou ao poder em vários países nas décadas seguintes. Está hoje no poder, para citar os casos mais visíveis, na Alemanha e na Inglaterra. Mas eles não têm nada a ver com os partidos que lhes deram origem. O Brasil, um país atrasado, chegou atrasado nessa história. O PCB foi esquerdista e golpista nos anos 30, apoiou Getúlio e teve imenso prestígio no pós-guerra, em decorrência da sua identificação com a União Soviética. Prestígio que sua direção logo malbaratou, recusando-se a desenvolver uma política independente. O processo de destruição do PCB só vai se completar com o golpe de 1964, quando ele vira uma correia de transmissão do populismo. É o fim do PCB que permite o surgimento do PT, no fim dos anos 70. Nos seus primeiros anos, ele se apresentava como um "partido sem patrões" e defendia a tomada do poder exclusivamente pelos trabalhadores, para implantar o socialismo. Em 25 anos, essa plataforma foi paulatinamente revista, até se tornar o seu contrário. Em 2002, o seu candidato foi eleito para a Presidência da República numa aliança com partidos de direita e com um programa que, a despeito da retórica reformista, era de defesa do status quo. Um programa que foi aplicado com rigor de recém-convertidos. Se a criação de um partido de trabalhadores chegou ao Brasil com atraso, o seu desmanche se deu com uma rapidez vanguardista. A socialdemocracia e o bolchevismo levaram décadas para se transformar em partidos reformistas e stalinistas. Foram necessários enfrentamentos formidáveis, disputas intrapartidárias, embates teóricos e ideológicos, expurgos, fuzilamentos, guerras e revoluções, para que o processo chegasse a termo. No Brasil, bastaram pouco mais de dois anos de governo, sem a eclosão de crises nacional e internacional, para que o PT se derretesse. É possível argumentar que, na raiz, os motivos do desmonte do Partido dos Trabalhadores seja o mesmo que levou à falência da socialdemocracia e do comunismo: a adaptação à ordem capitalista, a cooptação pelo sistema político tradicional, a recusa a desenvolver uma política própria, a procura de atalhos oportunistas para chegar ao poder. Numa palavra, à corrupção, entendida no seu sentido amplo. Ocorre que, no Brasil, o que detonou o PT foi a corrupção no seu sentido mais cru, mais tosco, numa escala crescente de vulgaridades: dinheiro para fazer campanha eleitoral, dinheiro para comprar parlamentares de outros partidos, dinheiro depositado no exterior para um marqueteiro preso em flagrante numa rinha de galos, dinheiro para dar uma casa para a ex-mulher, dinheiro para o filho do presidente montar uma empresa, o carro blindado do tesoureiro do partido, o jipão dado de presente por um empresário ao secretário-geral, festas com prostitutas, dinheiro em malas, dinheiro em cueca para o assessor do irmão do presidente do partido - e sabe-se lá o que mais haverá pela frente. O abatimento da militância petista se deve muito a esse contexto atroz. Não houve uma polarização com os adversários. Não houve contraposição de idéias, disputas políticas. Houve um processo furreca na forma e cujo conteúdo é o mesmo de máfias e gângsteres. A despeito de todas as mazelas que vieram à tona, o processo continua. Os seus arautos são os mesmos de sempre, a dupla responsável pela sua deflagração: Luiz Inácio Lula da Silva e José Dirceu. Cada discurso do presidente é uma penosa mistura de mistificação, demagogia e estultices. No da quinta-feira, ele afirmou que "a corrupção é uma doença impregnada no comportamento de alguns seres humanos". Um problema social, com forma histórica determinada, virou uma moléstia, um dado da natureza. José Dirceu, por sua vez, no mais acabado figurino stalinista, age nas sombras. Joga uns contra os outros, manipula e ameaça. E a direção do PT, acuada porque sabe que lhe deu carta branca, se acovarda. O fim do PT abre espaço para que o Brasil entre em sintonia com o espectro que ronda o mundo contemporâneo: o do fim da política. A política tradicional continuará existindo. Mas com seus partidos sem programa, com seus parlamentos sem representatividade, com a abstenção eleitoral crescente - em crise permanente, sem dar conta da complexidade e dos problemas da vida social. O que cresce é uma nebulosa antiglobalização, os altermundialistas, organizações e grupos que não almejam o poder, aqueles que pregam as lutas setoriais. Eles são fruto da descrença na política, na democracia e no Estado. Mas há o outro lado da moeda: os fundamentalismos religiosos, o terrorismo, o banditismo e a supremacia da força bruta também são sintomas da falência da política.
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domingo, agosto 28, 2005
Mario Sergio Conti O fim furreca do PT e o fim da política
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