VEJA
O Brasil gasta mal
O professor americano diz que no país são
os mais pobres que contribuem para ajudar
os ricos. Somos o avesso de Robin Hood
Chrystiane Silva
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O historiador econômico Peter Lindert, professor da Universidade da Califórnia, em Davis, nos Estados Unidos, é um mestre na análise de gastos sociais. Já passou a lupa analítica sobre as despesas de dezenas de nações. Em relação ao Brasil, conclui: o país gasta muito e gasta mal. Aos 64 anos, o autor de Growing Public, livro que mapeia a relação entre crescimento econômico e dispêndios sociais desde o século XVIII, surpreendeu-se com uma peculiaridade brasileira. Por aqui, apesar da prevalência de uma população jovem, a maior parte dos recursos é sugada pelo sistema previdenciário. "É um contra-senso", resume. "Essa lógica privilegia os idosos, militares e funcionários públicos. Sobra menos dinheiro para investir em saúde e educação." Com isso, explica ele, quase toda a contribuição dos mais pobres acaba financiando a aposentadoria dos mais ricos. "Eis aí o paradoxo de Robin Hood", diz o professor. É por isso que, ao contrário do que clamam vários setores da sociedade brasileira, o centro da discussão sobre gastos sociais deve se deslocar do volume da despesa para se concentrar em ações eficientes e confiáveis, que atendam quem precisa. Lindert falou a VEJA antes de participar, no Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial, da Conferência Internacional sobre Política Social no Brasil, na semana passada, em São Paulo.
Veja – O Brasil destina 25% de seu PIB para a área social, mas não consegue reduzir a pobreza. Isso significa que o país deveria gastar mais?
Lindert – Não. Na verdade, o investimento já é muito alto. O problema é que os programas sociais não atendem os mais pobres. Quase todo o dinheiro é usado para custear o sistema previdenciário dos mais ricos, principalmente dos militares e dos juízes. É um mecanismo distorcido, em que se gasta muito e mal. Essa situação não é uma marca do Brasil ou mesmo da América Latina. A Índia tem problema semelhante. As castas mais baixas pagam impostos para que as mais altas usufruam educação e saúde.
Veja – Mas o fato é que mais cedo ou mais tarde a população vai envelhecer. Como resolver a questão da previdência social no Brasil?
Lindert – Todos os economistas concordam que o Brasil é diferente do resto do mundo. É um país jovem, mas, ao mesmo tempo, tem grande preocupação com o envelhecimento. É difícil entender isso, pois existem muitas ações sociais que deveriam ser consideradas prioritárias no país. Só Itália, França e Alemanha têm despesas maiores com previdência do que o Brasil, que é um país jovem. Acontece que eles, sim, têm motivo para se preocupar, já que possuem uma parcela expressiva da população acima de 65 anos. É por isso que penso que, com o mesmo valor destinado à previdência, o Brasil poderia fazer muito mais e melhor para os mais pobres. Acho que o grande problema do modelo brasileiro de gastos sociais está na Constituição. Ela estabelece os porcentuais do produto interno bruto que devem ser investidos em algumas áreas. É isso que se chama de vinculação orçamentária.
Veja – Não é interessante que um país em desenvolvimento defina esses porcentuais por lei para garantir recursos para a área social?
Lindert – Os simplistas concordariam com essa tese. Mas essas questões são complicadas. Li, recentemente, um estudo do economista Raul Velloso em que ele compara os gastos sociais feitos em 1987, antes da aprovação da vinculação orçamentária na Constituição, com os de 2002. A conclusão é espantosa. Os indicadores sociais não melhoraram com a vinculação. Na verdade, eles continuaram abaixo dos de outros países latinos, que investem muito menos que o Brasil. Há nações em desenvolvimento que têm feito um eficiente trabalho com gastos sociais. Elas direcionam menos recursos para as aposentadorias. E repito: investem mais em educação e saúde. É o caso da Coréia do Sul e de Taiwan, que também vêm registrando bons índices de crescimento econômico. O exemplo europeu confirma isso. Mostra que é perfeitamente possível ter igualdade social e manter o crescimento econômico. Todos os países em desenvolvimento poderiam fazer a mesma coisa? É possível, mas cada um tem uma realidade diferente. O importante é não cair no discurso fácil de "vamos gastar mais". Essa é uma postura política voltada contra o social, e não a favor.
Veja – Ao longo da história, a idéia de ampliar gastos sociais esteve associada a partidos de esquerda. Isso ainda faz sentido?
Lindert – Nos países europeus, que têm os melhores sistemas sociais, esses programas são sempre associados aos partidos de esquerda. Mas isso é complexo nos países em desenvolvimento. No Brasil, a esquerda também clama por gastos sociais maiores para atender as camadas menos favorecidas. Mas os programas sociais atendem justamente os mais ricos. Quem é de esquerda nesse caso?
Veja – Qual é a saída para efetivamente ajudar os mais pobres? Criar um sistema em que os gastos sociais sejam direcionados a grupos específicos? Ou o regime de universalização, utilizado no Brasil, em que todos têm acesso a programas sociais?
Lindert – Essa é uma questão difícil. Para atingir os mais pobres, o Brasil deveria focalizar os gastos diretamente nas camadas menos favorecidas. Alguns programas brasileiros fazem isso, especialmente os que exigem que a ajuda financeira seja condicionada a algumas exigências, como é o caso do Bolsa-Escola. Para receber o benefício, as famílias têm de matricular os filhos no colégio. Esse é o melhor sistema de direcionamento de gastos sociais que vi no Brasil, mas tem de funcionar corretamente. A idéia desse projeto é boa, que fique bem claro. O Bolsa-Escola foi uma solução caseira para um problema local, mas que funciona muito bem. Embora ele não resolva o problema da qualidade do ensino, essas crianças terão formação melhor e poderão contribuir com o desenvolvimento do país. Mas é importante criar mecanismos para que o sistema funcione. É preciso ter certeza de que o dinheiro será direcionado para as pessoas certas e que o governo conseguirá monitorar se as crianças estão realmente indo à escola. O controle é fundamental. Na Índia, por exemplo, os professores recebem um alto salário, mas muitos nem sequer aparecem para dar aula. Ou seja, você pode ter uma boa instituição, mas precisa fazê-la funcionar direito.
Veja – O que é o paradoxo de Robin Hood?
Lindert – É quando os mais pobres contribuem para ajudar os mais ricos, e não o contrário. E o Brasil se enquadra nesse caso. O paradoxo de Robin Hood pode perdurar até 2050 em países que têm governos ruins. Eles sempre terão desigualdade, pobreza, e não há nada que o aumento de gastos sociais possa fazer por eles, porque não têm governo. O antídoto para o paradoxo é simples: bom governo.
Veja – Já que os mais ricos usufruem os benefícios sociais, o senhor quer dizer que eles devem contribuir mais?
Lindert – Não. Isso também não funciona. Taxas muito altas podem frear o crescimento econômico, pois tendem a afastar possíveis investidores, principalmente os estrangeiros. Para solucionar esse impasse, os conservadores defendem maior taxação do consumo. Não de forma generalizada nem exclusivamente os produtos de luxo. Mas, sim, o consumo ligado a hábitos, como as bebidas alcoólicas e o tabaco. Também pregam a cobrança de impostos maiores sobre produtos como a gasolina. Assim, é possível criar uma contribuição para a formação de um estado de bem-estar social sem afetar o crescimento econômico nem os investimentos. Eu considero esse sistema bom e justo. E ele não amedronta o capital estrangeiro. Agora, não há mágica para produzir bons programas sociais aliados a impostos baixos.
Veja – Mas, então, como impedir que só os ricos usufruam os gastos sociais?
Lindert – É preciso manter um regime democrático, com transparência de informações e regras claras. É fundamental haver espaço para críticas. É preciso combater ainda o uso irregular e o desvio de recursos. Isso é democracia. O Brasil não está em má posição sob esse ponto de vista. Tem um sistema democrático consolidado. Tem também grupos empresariais e políticos competitivos, e o governo presta contas dos gastos públicos. Isso torna a situação mais fácil. Há casos muito piores. A Índia é a maior democracia do mundo, mas quando você olha para a realidade daquele país percebe que, além de pobre e desigual, tem a agravante do sectarismo entre as castas. Os Estados Unidos, outro exemplo, tiveram de superar grandes problemas raciais e ainda encontram entraves nessa área. No caso do Brasil, não. No mínimo, essas questões são menos graves. A impressão que tenho é que estão todos juntos, unidos em um objetivo comum.
Veja – O que determina quanto um país deveria gastar em programas sociais como saúde, educação e previdência?
Lindert – Quatro quesitos definem quanto as nações devem direcionar a programas sociais. O primeiro parâmetro é a situação econômica. Os países mais ricos gastam mais. Outro ponto importante é o que defino como homogeneidade. Quando se tem a sensação de que, de fato, todos os cidadãos são iguais, que eles são o mesmo tipo de pessoa que você é, isso faz com que ninguém se incomode em pagar mais impostos, contanto que eles se revertam em bons programas sociais e segurança. O terceiro quesito é a idade da população. Sociedades em que há um porcentual maior de pessoas velhas têm obrigatoriamente de gastar mais em previdência social. O quarto aspecto a ser considerado – na minha opinião, o mais importante – é a existência da democracia. Se olharmos pelo retrovisor, veremos que não havia a preocupação com gastos sociais no mundo por volta do início do século XX. Mas hoje, com a consolidação dos sistemas democráticos, quando se observa a desigualdade social e a pobreza, a primeira pergunta que se faz é por que ninguém toma providências a esse respeito. Só há uma resposta: falta de vontade dos governos.
Veja – O que o Brasil pode fazer para melhorar a qualidade dos gastos sociais? É possível medir a eficiência dos programas?
Lindert – O que dá para fazer agora é olhar coisas óbvias, básicas. Crianças na escola, hospitais... E, é claro, restringir a generosidade concedida às classes sociais mais altas. Sem dúvida, é possível medir a eficiência dos gastos públicos, mas ainda não há estatísticas mundiais completas para fazer um levantamento preciso. Talvez no futuro possamos medir com maior exatidão o efeito dos gastos públicos, mas agora não existem boas ferramentas para isso. Um fator que sem dúvida pode contribuir para essa análise é a transparência. Vivemos na era das câmeras e da internet, em que facilmente a população pode ser informada sobre o que é feito com seu dinheiro e onde ele é usado.
Veja – Que áreas sociais deveriam receber mais investimentos e quais poderiam trazer melhores resultados a curto prazo?
Lindert – Para reduzir a desigualdade social e promover o crescimento econômico de uma nação, é preciso deslocar os gastos públicos para longe das aposentadorias, especialmente as dos servidores públicos, e investir em educação e saúde. Na educação, seria necessário concentrar os investimentos na formação de professores e nos alunos do ensino fundamental e do ensino médio. Só com educação um país consegue crescer. Na área de saúde pública é preciso investir em programas de prevenção, principalmente fora das grandes cidades. Esse direcionamento de recursos já foi utilizado por outros países e deu bons resultados. É isso que a experiência internacional sugere.
Veja – É possível fazer bons programas sociais mesmo em países com problemas para equilibrar as contas do governo?
Lindert – Entre os países desenvolvidos, podemos constatar que os que têm gastos sociais elevados e altos impostos não apresentam grandes déficits públicos. Curiosamente, os que têm os maiores déficits são justamente aqueles que possuem menos recursos destinados à área social. O do Japão é elevadíssimo, e isso não tem nenhuma relação com um estado de bem-estar social. O segundo maior déficit do mundo é o dos Estados Unidos, onde os impostos usados para custear os avanços militares fizeram explodir o orçamento americano. Em suma, não há necessariamente uma relação entre as duas coisas.
Lindert – Felizmente, não. O Brasil está melhor que o grupo de países que dificilmente conseguirão melhorar de vida. Eles ficam em zonas de guerra e são muito pobres. O Brasil está entre as nações que podem crescer bastante quando enfrentarem seus problemas. Elas serão capitaneadas pela China, que, em breve, deve se consolidar como um dos países mais prósperos do mundo. O Brasil também estará nesse grupo e tem muito a ensinar à China. Aqui, existe democracia, governo e instituições muito mais sólidas do que no gigante asiático. Isso sem falar nos recursos naturais. Na minha opinião, o futuro imediato do Brasil é muito bom.