Entrevista:O Estado inteligente

quinta-feira, agosto 25, 2005

DEMÉTRIO MAGNOLI À sombra de Paul Broca

FOLHA DE S PAULO

  A craniometria adquiriu, no século 19, popularidade similar à dos testes de QI no pós-guerra. A "ciência" da mensuração de crânios servia como "prova" da hierarquia das "raças", algo crucial para as sociedades européias que se lançavam à expansão imperialista na África e na Ásia. O francês Paul Broca (1824-80) elevou a craniometria ao píncaro da glória, aplicando métodos sofisticados de quantificação e análise estatística.
Broca, ao contrário de tantos colegas, não manipulava os fatos (isto é, na opinião dele, os números). Suas pesquisas de anos produziram, porém, uma dificuldade: embora os crânios de negros africanos fossem, como deviam ser, menores que os da "raça caucasiana", crânios de esquimós, lapões, malaios e tártaros ultrapassavam os dos "mais civilizados povos da Europa. Como solução, ele ofereceu a interpretação de que a crua medida do crânio não proporcionava uma tábua completa da hierarquia racial, mas insistiu no "valor de um crânio pequeno como sinal de inferioridade".
O talento interpretativo de Broca parece inspirar a Secretaria da Igualdade Racial (Seppir) e o Ministério da Saúde, que resolveram promover correlações estatísticas entre a Aids e as "raças". A novidade aparece no "Boletim Epidemiológico da Aids 2004".





A tabela tem um deliberado efeito sedutor, clamando por interpretações "raciais" da doença. Uma seleção analítica dos números absolutos sugere que o HIV "prefere" a "raça branca", que perfaz cerca de 54% da população. No sentido inverso, uma seleção das curvas evolutivas gera a hipótese de que o HIV alterou sua "preferência" na direção da "raça negra" nos últimos anos.
Mas, como admitem os responsáveis pelo novo produto estatístico, não há correlação entre o vírus e a cor da pele: a doença, como era de esperar, adquire uma distribuição demográfica normal à medida que se espraia por contágio heterossexual. Por que, então, não concentrar as atenções na correlação entre a Aids e a renda, que revelaria diretamente o verdadeiro sentido da evolução da doença? Qual é o interesse da Secretaria da Igualdade Racial, quando força a implantação do item "raça" em todas as estatísticas de saúde no Brasil, senão sugerir falsas correlações "raciais"?
No rastro do "Boletim Epidemiológico da Aids", a Seppir firmou convênio com os ministérios da Saúde e da Educação para patrocinar um programa de pesquisa que se propõe a relacionar a epidemia de Aids com "questões socioeconômicas e culturais dos afro-descendentes". Os encarregados de estabelecer tais relações são 500 jovens negros e cotistas de universidades públicas, agraciados com bolsas de pesquisa. Não é preciso enfatizar que tanto a hipótese original quanto o viés ideológico do patrocinador direcionam a investigação para a produção teórica de uma "epidemiologia racial".
Como Broca, a Seppir não recolhe números para formular perguntas, mas para promover a demonstração "científica" da sua ideologia. A Seppir não medirá esforços para dividir e classificar os brasileiros em "raças". Mesmo à custa da reativação de preconceitos biológicos do tempo da craniologia

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