Entrevista:O Estado inteligente

domingo, agosto 28, 2005

Recompor os sonhos CRISTOVAM BUARQUE

folha de s paulo

Nada indica melhor o nivelamento do PT com os demais partidos do que a idéia de que, para sua refundação, basta retomar a ética. Como se a ética não fosse uma obrigação de todos, sem nenhum mérito diferenciador. Alguns acham que a refundação do PT consiste em expulsar alguns dirigentes. Outros consideram que, além de retomar a ética, seria preciso romper com a política econômica do governo. Como se um novo partido surgisse simplesmente da eliminação de alguns de seus membros e da redução da taxa de juros.


O PT precisa assumir que não é mais o irmão mais velho da esquerda. É apenas parte dela, e está debilitado


A necessidade de mudança no PT vem sendo alertada por muitos e há muito tempo. É preciso, porém, que tal mudança seja muito mais profunda. O PT precisa entender que seus erros vêm de um descompasso com a realidade presente em comparação com a realidade do tempo de sua fundação. Nesses 25 anos, mudou radicalmente a economia do mundo, mas não mudou a realidade social. A chamada refundação tem de começar por uma nova atitude, na qual o PT aceita a realidade da economia, como o governo Lula vem fazendo corretamente, mas se dedica a mudar a realidade social, como lamentavelmente o governo Lula não tem feito.
Em 1980, as economias nacionais eram fechadas, acreditava-se no milagre do planejamento, apostava-se na estatização, a produção exigia emprego e a irresponsabilidade fiscal era premiada. Hoje, a economia precisa ser aberta, o mercado precisa ser respeitado, a responsabilidade fiscal precisa ser assegurada, a privatização precisa ser mantida e o aumento de produção prescinde de mão-de-obra adicional. E o PT ainda não adotou essa doutrina.
Ao mesmo tempo, a distribuição de renda piorou, a desigualdade na educação e na saúde aumentou e nossos avanços ocorrem em velocidade menor que no resto do mundo. E o PT não percebeu que precisa de uma proposta para mudar a realidade social, conservando o realismo na política econômica.
A refundação do PT exige muito mais que simples arranjos na estrutura interna de poder do partido. Mudar as mãos de nada serve, se a cabeça não mudar.
Em 1980, acreditava-se que a injustiça da desigualdade social vinha da polarização entre capital e trabalho, lucro e salário. Em 2005, sabe-se que a desigualdade não decorre da distribuição da propriedade, mas da distribuição do conhecimento. E que a consolidação nacional está menos no fechamento das fronteiras e mais na formação de uma base científica e tecnológica. A ação de um partido de esquerda está menos na capacidade de influir na política econômica e mais na execução de políticas sociais, especialmente na educação da população. E a arena da disputa ideológica está menos na economia e mais na distribuição dos recursos orçamentários.
Essa verdadeira refundação dificilmente ocorrerá no PT nos próximos anos, por duas razões de princípios e duas de cultura. O PT é um partido criado sob a lógica da disputa dos trabalhadores contra os patrões e a lógica de que os problemas sociais se resolveriam na medida em que os trabalhadores pudessem apropriar-se de uma parcela maior da renda nacional.
Do ponto de vista cultural, o PT nasceu e cresceu sob a dominação da luta pelo poder, tanto internamente, entre seus grupos, como externamente, contra todos os demais partidos, e se formou mais para apoiar reivindicações de trabalhadores que para formular um projeto alternativo para todo o país.
Por essas razões, a refundação do PT requer uma reformulação que exigirá uma nova geração de militantes. A realidade social brasileira não pode esperar pelo PT. É preciso refundar a esquerda. Recompor os sonhos, aglutinar os sonhadores. Se sem o PT isso será difícil, por seu intermédio será impossível. O PT precisa assumir que não é mais o irmão mais velho da esquerda. É apenas parte dela, e está debilitado.
A mudança na realidade da economia não mudou a realidade social e o Brasil continua sonhando os mesmos sonhos: revolução educacional, desconcentração da renda, redução da desigualdade regional, proteção do meio ambiente, sistema eficiente de saúde, cidades pacíficas, soberania, crescimento sustentado e abolição da apartação social. Os milhões de brasileiros que votaram em Lula continuam sonhando, acreditando que tudo isso é possível. Mas se sentem frustrados com a inapetência e com a inoperância do governo do PT. É preciso recompor o grupo dos que ainda sonham, independentemente do partido.
Nenhuma transformação social no Brasil foi conseguida por um partido. Independência, abolição, República, democracia, anistia, Constituinte -todas resultaram de um movimento. Não será um partido que retomará o sonho, mas sim um movimento pelo reencantamento do Brasil, pela recomposição do sonho, que, apesar de parecer morto, continua tão necessário quanto antes.

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