FOLHA DE S PAULO
No dia em que Lula afirmou que, se fosse para perder pela quarta vez, não se candidataria à Presidência da República, pôs o PT contra a parede e o obrigou a escolher entre a coerência ideológica e o pragmatismo. Não que o PT até ali se tivesse mantido casto, fiel à sua bandeira da ética na política, pois ocorreram o escândalo resultante do envolvimento com os bicheiros no Rio Grande do Sul e o não explicado assassinato do prefeito de Santo André. Tanto num caso como noutro, os indícios de corrupção eram palpáveis. Apesar disso, graças à capacidade de reafirmar-se ético e limpo, transferindo a acusação aos seus acusadores (estes, sim, corruptos, serviçais dos empresários e dos banqueiros...), o PT conservou a imagem de um partido diferente dos demais, identificado com os trabalhadores, com o povo explorado e injustiçado. Enfim, um partido de esquerda. Em nome da coerência, seus aliados preferenciais eram, em âmbito nacional, os minúsculos PC do B e PSB.
Ao longo dos anos, o PT rejeitou tomar parte em qualquer governo. Negou-se a assinar a nova Constituição, puniu quem apoiou a eleição de Tancredo, opôs-se ferozmente aos governos de José Sarney, Fernando Collor, Itamar Franco e Fernando Henrique Cardoso. Tudo em nome dos ideais que norteavam sua luta. Quem tergiversava era expulso. Alguém podia pôr em dúvida a consistência programática e ideológica do PT? Ninguém. Mas o preço disso foi a derrota sistemática de Lula nas eleições presidenciais de 1989, 1994 e l998. Ao se aproximarem as eleições de 2002, Lula condiciona sua candidatura a uma mudança radical de postura do PT e, de fato, a partir daí, a postura é outra. Por isso não hesito em afirmar que cabe a Lula a principal responsabilidade por tudo o que vai acontecer com a campanha eleitoral e com o seu partido, dali em diante.
Se não, vejamos. Aceitas as condições impostas por Lula para candidatar-se, o PT tem que aceitar todas as demais imposições, mesmo porque não tinha o partido nenhum outro nome com as mesmas possibilidades de disputar a Presidência da República. Lula então escolhe para seu vice um empresário de Minas Gerais, sem qualquer expressão política em âmbito nacional, mas do PL, partido conservador, dominado pelos evangélicos do bispo Macedo. Pode-se imaginar com que dificuldade os petistas fiéis aos ideais socialistas engoliram essa escolha. Mas a engoliram. Lula então determina que a sua campanha deve ser entregue ao marqueteiro Duda Mendonça, que fizera a campanha de Paulo Maluf. Os petistas ideológicos reagem, mas têm de se dobrar e, em breve, surge no cenário político nacional um novo Lula: o Lulinha, paz e amor, sorridente e moderado. Nada de criticar de novo o tratado de não-proliferação de armas atômicas, nada de afirmar de novo que era contra a exportação de cereais enquanto houvesse um só brasileiro passando fome, nada de clamar contra o superávit primário, contra as altas taxas de juros...
Tudo bem. Mas examinemos alguns pontos cruciais. Por exemplo: Lula aprova dar 10 milhões de reais ao PL para viabilizar a aliança eleitoral. De onde sairia o dinheiro? Outro exemplo: Duda, ao ser convidado, pediu 25 milhões de reais para fazer a campanha de presidente, num pacote que incluía também as campanhas para o governo de São Paulo, do Rio e a de Mercadante para o Senado. Certamente, isso foi levado ao conhecimento de Lula e ele deve ter dito: "A gente aceita". Há ainda as despesas com os partidos aliados nos Estados. Essas alianças também foram exigidas por Lula. Ele queria ser presidente da República, custasse o que custasse. Logo, se o PT se envolveu em todos esses compromissos, se topou gastar o dinheiro que não tinha, isso se deve à opção de Lula e a suas imposições ao partido. Não importa se ele discutia ou não com seus assessores os custos da campanha, não importa se lhe comunicavam ou não as dívidas que eram contraídas e os empréstimos que eram feitos. Não podia ignorar que tudo aquilo seria pago a peso de ouro. Se fazia por ignorá-lo, pior; só indica que se deixara cegar pela ambição de eleger-se presidente do Brasil.
Eleito, Lula monta uma base parlamentar apoiada no PL, PTB e PP, partidos sabidamente fisiológicos, além do PC do B, PSB e PPS. Estes três últimos não implicavam os mesmos problemas que os três outros, os quais não tinham com o PT nenhuma afinidade ideológica e, além do mais, comprometiam-lhe a imagem de partido de esquerda. A direção petista, preocupada com isso, buscou um meio de manter seu apoio a Lula sem lhes entregar altos cargos no governo: o jeito foi comprá-los a dinheiro vivo, o "mensalão".
Não resta dúvida, portanto, que, nas opções feitas por Lula, residem as causas dos endividamentos, dos empréstimos, do "mensalão", do uso do caixa dois. Não pretendo com isto inocentar a Delúbio, Silvinho, Genoino e Zé Dirceu, obviamente responsáveis pelas trapaças que arquitetaram, praticaram ou consentiram. Mas o fizeram para viabilizar a eleição e o governo de seu chefe. Por isso mesmo, no ambíguo discurso em que pediu desculpas à nação, Lula, ao dizer-se traído, evitou citar-lhes os nomes. Sabe muito bem que não pode fazê-lo. Sua responsabilidade em tudo o que ocorreu é indiscutível. Nem por isso defenderia a tese do seu impedimento.
Entrevista:O Estado inteligente
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