Entrevista:O Estado inteligente

terça-feira, março 13, 2007

Arnaldo Jabor - Uma doença chamada Brasil




O Globo
13/3/2007

"Não me interessam as causas; só lido com as conseqüências" (de um policial carioca)

Étão grande a distonia entre o que pensamos sobre o Brasil e o que está acontecendo, é tão inútil usar as palavras racionalmente, diante da brutalidade deste "outro país" do crime e da miséria, que caio em desânimo: que adianta ficar os últimos 17 anos escrevendo em nome da "razão", se os jornais pingam sangue, se vemos que foi necessário um pobre menino arrastado até a morte e outros queimados vivos, para que a Câmara votasse algumas poucas melhoras nas leis contra crimes hediondos?

Eu andei com uma doença chamada Brasil. Sim, não quero bancar o sensivelzinho não, mas saí de férias para não pirar de vez. Cheguei em Portugal no dia em que o menino foi arrastado pelas ruas. Até hoje não li os detalhes, tal meu horror que já ia alto, depois daquela família queimada viva. Mas aquilo não me saía da cabeça. Voltei jurando a mim mesmo que seria mais cínico, que ia endurecer a pele.

Mas, chego e vejo a polêmica provocada pelo artigo do Renato Janine Ribeiro, "Razão e sensibilidade", na "Folha", onde ele expõe seu horror diante do inominável. Li seu artigo e toda a cascata de réplicas.

Para quem não leu, Janine, professor de ética, desejou publicamente que os assassinos fossem mortos na cadeia com crueldade e lentidão, tomado de nojo e rancor como ele estava. E, hoje, contrafeito, meto minha colher nessa sopa de cabeça de bode.

Sei que o assunto é grave e que não cabe numa pobre coluna, por isso minhas opiniões vêm como um rascunho do que acho que deveria ser estudado.

Acho que Janine prestou um serviço à Academia, perdendo a cabeça. Ele mostrou que vivemos trancados num racionalismo impotente. Finalmente, um intelectual perdeu as estribeiras. Mostrou que está vivo, que intelectual tem corpo, sangue, come, bebe, vomita, chora, para além daquela posturazinha solene, daquele sorriso sutil acima da vida que ele lamenta que seja tão errada.

O que aconteceu na cabeça do menino arrebentado e na cabeça do Janine mostra que estamos aquém de entender que o Brasil de hoje, não só na violência mas na barbárie política, é incompreensível pela antropologia ou sociologia disponíveis. Se Janine errou, provocou uma fecunda reação.

Em geral, lamentamos uma harmonia ainda inexistente e almejamos que ela seja alcançada, um dia. Janine furou o bloqueio da boa consciência acadêmica e isso foi importante. Não podemos continuar "lamentando"; temos de projetar. Na mesma hora, vieram inúmeros bombeiros para apagar o fogo, chegaram os panos quentes dos intelectuais para restaurar a dignidade dos capelos, da togas, do sólido amargor humanista. Ele seria um fascista? Ele estaria endossando o irracionalismo, ele seria um defensor da pena de Talião, o quê?

Os textos dos "bombeiros" tentavam restabelecer uma ordem reflexiva perdida diante desse bucho indomável da miséria, do "alien" que se forma como um monstro boçal e sangrento nas ruas e periferias. Assim como a burguesia blinda seus carros, os pensadores também protegem suas teses de doutorado. Isaiah Berlin escreveu que o ódio a Maquiavel provém do fato de que ele acabou com a esperança na harmonia platônica. É parecida a reação contra Janine em sua explosão emocional.

Vivemos uma "modernidade" veloz e falamos um discurso antigo, a reboque dos fatos. Os conceitos que eram nosso muro-de-arrimo foram esvaziados de sentido. A reação de Janine mostra isso.

Como bem escreveu Oswaldo Giacoia Jr, a propósito do horror:

"O insuportável não é a dor, mas a falta de sentido da dor, mais ainda, a dor da falta de sentido."

Por isso, todos nós perguntamos horrorizados: "Por que eles fizeram aquilo?".

Resposta: "Por nada..."

Inconscientemente, os assassinos brasileiros de hoje já têm o prazer perverso de fazer o inominável. Eles sentem difusamente um clima de anomia, de um vale-tudo ético e "curtem".

Como citou Olgária Matos, Adorno disse que "a sociedade totalitária é a perda da capacidade de identificação com a dor do outro, o fim da compaixão".

Acho que nossa situação é mais incompreensível ainda. O nazismo tinha um "projeto", um milênio ariano, o nazismo tinha normas, organização, que dá até para a "razão" analisar a posteriori. Isso que está ocorrendo está além (ou aquém) do horror nazista.

Qual será o nome dessa coisa informe que a miséria está gerando? É uma mistura de lixo e sangue, uma nova língua de grunhidos, mais além da maldade, uma pura explosão de rancor, a crueldade como prazer. O crime aqui é quase um esporte. Não matam por Alah, ou por fins políticos. Para além da cocaína e do dinheiro, são terroristas sem causa.

No entanto, a Justiça e os pensadores continuam a tratar os crimes como "desvios da norma". Elias Maluco, quando matou Tim Lopes a espadadas, tinha sido liberado da cana.

Não se trata mais de uma perversão do "humano", mas de uma perversão do "animal" em nós.

E, diante do horror, vem a pergunta: "O que fazer?".

De cara, vêm as sugestões de penas mais duras, de morte, rebaixamento de idade etc..

Mas, creio que o urgente seria um diálogo profundo, permanente, entre o Judiciário e o Legislativo, para irmos além do simplismo que Lula emitiu, falando em "causas sociais", o que paralisa qualquer ação de governo.

Quem sou eu para falar em solução? Mas como reformar algo com juristas caretas e solenes, e intelectuais agarrados em meia dúzia de conceitos antigos?

Que visgo brasileiro é esse que gruda no chão os donos do poder, os empatadores do progresso?

Não há respostas imediatas para nosso horror. Mas o "erro" de Janine foi um bem e ele diz com razão:

"O intelectual é público. Só que, para ele cumprir seu papel público, é preciso acreditar no que diz. Ora, quantas vezes o intelectual afirma aquilo em que não acredita? Quantos não foram os marxistas que se calaram sobre os campos de concentração, que eles sabiam existir?".

E, aí, eu enfio minha última colher na sopa de bode preto: quantos se calaram diante do evidentíssimo e crudelíssimo assassinato de Celso Daniel , por ser politicamente inconveniente naquele momento?

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