Entrevista:O Estado inteligente

sexta-feira, março 30, 2007

Leôncio Martins Rodrigues Não dá mais para ignorar os pobres



Leôncio Martins Rodrigues
Época num. 0458
25/2/2007

Eles estão obrigando partidos como PSDB ou PFL a mudar de cara, afirma o cientista político

Conhecer as opiniões e as idéias do cientista político Leôncio Martins Rodrigues é sempre um caminho seguro para entender a fundo a política brasileira. Entre os pensadores da atualidade, poucos conhecem tão bem quanto ele o funcionamento dos partidos políticos e a lógica do movimento sindical. Autor de vários livros sobre o sistema político brasileiro, nesta entrevista Rodrigues ajuda a entender o momento especial por que passam PSDB, PFL e PT - três dos quatro principais partidos do país. Eles estão anunciando grandes convenções para o meio do ano, eventos que servirão para escolher novos caminhos. O desafio do PFL e do PSDB, segundo Rodrigues, é aproximar-se do eleitorado mais pobre. O PT tem dois obstáculos pela frente: livrar-se de uma burocracia que só pensa na própria sobrevivência e não ficar a reboque do "lulismo".

QUEM É ELE
Paulistano, de 73 anos, dois filhos

CARREIRA
Cientista político, foi professor titular da Universidade de São Paulo (USP) e da Universidade de Campinas (Unicamp)

O QUE PUBLICOU
Escreveu 14 livros sobre sindicalismo e partidos políticos. O último deles, Mudanças na Classe Política Brasileira, analisa a formação da Câmara dos Deputados depois das eleições de 1998 e de 2002

ÉPOCA - O PSDB, o PFL e o PT, três dos quatro principais partidos políticos do país, querem mudar de cara. O PFL mudou o nome para Partido Democrata, o PSDB está atrás de exemplos no exterior e no PT há um movimento pela "refundação do partido". O que está acontecendo com eles?
Leôncio Martins Rodrigues - Cada partido tem seus próprios problemas, mas no caso do PSDB e do PFL há um ponto comum. Ambos enfrentam um desafio que a cada eleição se coloca com mais força: como obter êxito eleitoral num contexto de política de massas, caracterizada pela universalização do voto e conseqüente expansão do eleitorado pobre e de baixa escolaridade

ÉPOCA - O PSDB e o PFL estão com dificuldade de falar com esse eleitorado mais pobre, que deu a vitória a Lula na última eleição?
Rodrigues - Acho que sim. Essa fatia do eleitorado, de "pobres modernizados", que vêem televisão, expandiu-se ao mesmo tempo que se enfraquecem os controles clientelísticos de clãs oligárquicos que dominavam setores do aparelho de Estado e transformavam municípios e Estados em verdadeiros feudos familiares que lhes garantiam acesso ao governo federal e a verbas públicas. A massificação da política brasileira, ainda que se desenvolva de modo desigual nas diferentes regiões, é um movimento sem volta, a que terão de se adaptar todos os partidos e tendências ideológicas.

ÉPOCA - Quais as conseqüências dessa massificação da política brasileira?
Rodrigues - Vou me limitar a apontar duas. Uma diz respeito aos custos das campanhas eleitorais. Eles se elevaram bastante. O eleitorado cresceu, as pesquisas são caras e as técnicas de marketing também. A outra conseqüência é o quase desaparecimento, entre os temas postos em debate, das propostas ideológicas e programáticas. Pesquisas de opinião localizam as principais demandas dos eleitores para incluí-las no rol de promessas. Com isso, no esforço de seduzir os eleitores e de dizer o que eles querem ouvir, os partidos tendem a se assemelhar em termos de suas promessas de campanha.

ÉPOCA - E como o crescimento do eleitorado pobre está afetando a força de cada partido?
Rodrigues - Eu ressaltaria o declínio persistente dos partidos considerados de direita, especialmente o PFL. O PSDB, embora seja considerado de centro, foi outro partido que, depois da eleição do Lula, perdeu cadeiras na Câmara dos Deputados. Mas vários outros fatores necessitariam ser investigados para entender as perdas dos tucanos no Legislativo federal. Note-se que o PMDB, também visto como de "centro", manteve suas posições.

ÉPOCA - Foi em razão das mudanças no eleitorado brasileiro que o PFL decidiu mudar o nome?
Rodrigues - A razão que me parece mais importante é apagar as marcas genealógicas que ligam o partido com a antiga Arena e a outras legendas anteriores, "conservadoras"ou de "direita". A massificação do jogo político e a extensão da cidadania às camadas baixas não têm favorecido os partidos considerados de direita. Um exemplo: há tempo os pefelistas não têm candidato para o posto máximo da República, ainda que tenham obtido êxito nas disputas estaduais e municipais.

ÉPOCA - E o que acontece com o PSDB?
Rodrigues - O PSDB me parece meio desorientado. Perdeu o controle do governo federal e precisa encontrar um perfil oposicionista. Minha impressão é que os principais desafios do PSDB hoje são os seguintes: 1) diminuir a imagem de ser um partido de elite ou das classes médias do Brasil desenvolvido; 2) ganhar votos entre a massa de eleitores pobres do Nordeste e do Norte; 3) consolidar novas lideranças com possibilidades de substituir os grandes nomes do passado; 4) encontrar uma resposta adequada para o neopopulismo assentado nas "políticas sociais" de Lula; 5) evitar uma cisão entre suas principais lideranças; e 6) barrar uma possível onda adesista nas franjas do partido que não conseguem, como a maioria dos políticos brasileiros, ficar longe do calor do poder.

ÉPOCA - O senhor acha que o PFL e o PSDB podem incorporar o assistencialismo como meio para se aproximar do eleitorado pobre?
Rodrigues - O que a atual oposição deve fazer, eu não sei. Mas alguma forma de assistencialismo sempre existe. Parece que é difícil reduzir de modo significativo a dimensão dos "programas sociais". Como conciliá-los com uma política séria de crescimento econômico e de investimentos produtivos deve ser um dos principais problemas de uma administração com menos demagogia e mais realização.

A massificação da política brasileira é um movimento sem volta

ÉPOCA - O PT também está discutindo seu futuro. Há políticos importantes dentro do partido falando na refundação da sigla...
Rodrigues - Não existem "refundações" partidárias. Mas "atualizações" são possíveis. Só que o PT não parece querer atualizar-se. O que entra em pauta é definido como refundação - o retorno ao passado, aos projetos de transformação de tipo socialista. Só que o PT não é mais o "partido do ABC paulista", já não é um "pequeno partido". As bandeiras que motivaram a militância no passado não servem para governar. A militância, hoje, quer cargos.

ÉPOCA - Então o que representa o PT hoje?
Rodrigues - Os sindicalistas e aparatchiks (burocratas) do partido formaram uma nova elite do poder e tentam fazer parte dos estratos de alta renda. Estão enriquecendo e subindo socialmente por via da política - fenômeno que, aliás, não é excepcional na vida política. A ascensão da nova elite petista tem muitos traços da situação que os italianos denominaram de "transformismo", s de incorporação dos vícios dos antigos grupos dominantes por parte de uma nova elite que ascendeu politicamente com propósitos renovadores e depois se acomodou. Realisticamente, talvez não fosse possível para o PT chegar à Presidência da República de outra maneira.

ÉPOCA - Mas esse fenômeno não é exclusivo do PT. O PSDB também não fez a mesma coisa?
Rodrigues - Sim. Mas a conduta do PT choca mais porque a discrepância entre o que propunha e sua prática posterior é maior que no caso do PSDB. Como o PT tem mais militantes vindos de baixo, as pressões por um emprego público (que aparece sob um manto ideológico) são mais intensas. As diferentes facções se acotovelam internamente e externamente com os demais partidos que compõem a base governista. Nunca, neste país, a atividade política assumiu tão claramente o caráter de uma mera disputa por pedaços do Estado.


ÉPOCA - Como essa situação afeta o futuro do PT?
Rodrigues - Os partidos mudam ao crescer e mais ainda ao ocupar o Estado. No caso dos partidos em que a ideologia tinha um peso muito forte, esse salto da oposição ao poder freqüentemente gera muita desilusão entre os que eram motivados basicamente pela ideologia partidária, entendiam a política como a realização de ideais e não de luta em torno de interesses. É o caso de muitos intelectuais e simpatizantes do PT que agora estão tomando lições dos ex-sindicalistas sobre a política como ela é. É difícil, porém, saber como esses processos de mudança afetarão o futuro do partido. De modo geral, entendo que, como acontece sempre que um partido de formação extraparlamentar chega ao poder, o partido se enfraquece ante o Estado e o "grande líder".

ÉPOCA - O senhor quer dizer que o próprio presidente Lula representa uma ameaça para o futuro do PT?
Rodrigues - Creio que a maior ameaça ao PT como partido vem do "lulismo", da expansão do prestígio do presidente entre as massas pobres desorganizadas. A própria CUT que se consolidara com uma bandeira de sindicalismo autêntico e combativo desapareceu como força de oposição. É hoje uma correia de transmissão do Palácio do Planalto. O presidente, com sua espetacular vitória eleitoral, conseguiu colocar-se acima de seu partido, na verdade, acima de todos. O PT é hoje mais dependente do que nunca do seu líder máximo, que tem, além dos votos, a chave do cofre. Daí as possibilidades de expansão de alguma modalidade de neopopulismo.

ÉPOCA - E o PMDB? Nada aconteceu com ele?
Rodrigues - O caso do PMDB é curioso. Considerado de "centro" pela maioria dos analistas, tem feições políticas pouco marcadas. Tem tido razoável êxito em competições para o Senado, Câmara, Assembléias Legislativas, governos estaduais e prefeituras. Contudo, surpreendentemente, não tem conseguido candidatos competitivos para o posto máximo da República. Nisso, se parece com o PFL. Talvez uma explicação resida no fato de o PMDB, depois da cisão que resultou no PSDB, não ter grandes figuras de porte intelectual e de brilho político de âmbito nacional, como PT e PSDB. Em compensação, também não é odiado ou amado como esses dois partidos, possivelmente pelo fato de não parecer associado a algum projeto político, de tipo estatizante ou liberal.

ÉPOCA - E o que é o PMDB hoje?
Rodrigues - Do ângulo de suas fontes sociais de recrutamento político, a bancada do PMDB na Câmara tem uma distribuição relativamente bem equilibrada de políticos que vieram do setor empresarial, das profissões liberais e do setor público estadual e do municipal. Poucos vieram do magistério e das classes assalariadas. Também não há sindicalistas e poucos pastores das igrejas pentecostais na sua bancada federal. Uma hipótese, aqui, seria essa composição social favorecer a posição de "centro" do PMDB, que parece um partido um pouco "caipira". Sem perspectiva de ter candidatos fortes para a Presidência, o PMDB é um caso de adaptação bem-sucedida à posição de coadjuvante, uma legenda que serve para a entrada na política e posterior disputa por cargos burocráticos. Mas é uma legenda cujo apoio é necessário para os que conquistam a Presidência da República.

Foto: Claudio Rossi/Época


Época 7/2/2005 Edição 351 - 07/02/05

''Estão se lambuzando''

Cientista político diz que o PT ficou encantado com a ascensão social e abandonou a velha idéia de fazer a revolução

Leandro Loyola


O cientista político Leôncio Martins Rodrigues começou a estudar o movimento sindical e os partidos políticos há mais de 40 anos. Acompanhou de perto as greves dos metalúrgicos do ABC paulista na virada da década de 70 para a de 80. Foi nesse ambiente que viu o surgimento do hoje presidente Luiz Inácio Lula da Silva como o maior líder sindical do país e acompanhou a fundação do Partido dos Trabalhadores (PT), um misto de diferentes correntes de esquerda, Igreja e trabalhadores. No Brasil, pouca gente entende do assunto tanto quanto ele. Leôncio conhece a lógica dos sindicalistas e como seu pensamento foi transferido para o governo. Nesta entrevista, Leôncio ajuda a entender o que está acontecendo com o PT, com os partidos políticos, como pensa o governo e por que faz certas coisas.

Leôncio Martins Rodrigues

Maurilo Clareto/ÉPOCA

Dados pessoais
Paulistano, 71 anos, tem dois filhos

Carreira
Cientista político, foi professor titular da USP e da Unicamp. É autor de 13 livros sobre sindicalismo e partidos políticos

História
Estuda movimentos sindicais desde os anos 60. Acompanhou in loco as greves dos metalúrgicos de 1979 e 1980, quando o presidente Lula e o PTsurgiram

ÉPOCA - O presidente Lula prepara uma reforma ministerial para abrigar até o PP, um partido de direita. Na semana passada, foi vaiado por militantes de esquerda que antes o apoiavam. O que está acontecendo com o PT e com Lula?
Leôncio Martins Rodrigues -
Um partido de esquerda no poder, como o PT, tem de se afastar um pouco das antigas reivindicações. Um partido é uma organização que quanto mais cresce mais complexa fica. Ele se institucionaliza, começa a colocar seus interesses acima dos interesses de seus eleitores, se burocratiza, ocorre a especialização das funções e multiplicação dos postos. Isso acaba pesando. Quando surgem as vantagens que o poder dá - mordomias, as delícias de mandar, de bens materiais que passam a ser usufruídos -, vêm as perguntas: por que fazer a revolução?, por que mudar?, por que arriscar isso? Um partido como o PT, que surgiu de baixo, não tinha dinheiro, coisas materiais para distribuir aos militantes, apenas ideologia, agora tem cargos a distribuir para os membros do partido.

ÉPOCA - O senhor diz que todos os partidos tendem a caminhar para o centro do espectro político. Por quê?
Leôncio -
Até a Segunda Guerra Mundial, a política era muito ideologizada: o operário inglês votava no Partido Trabalhista, que representava sua classe. Após o conflito, houve uma redução do peso da ideologia na política e um avanço do pragmatismo para atender às demandas de uma sociedade de consumo. Como não há mais a possibilidade de tomar o poder de assalto, os partidos políticos têm de jogar o jogo eleitoral, que é caro e no qual ninguém entra para perder. Por isso os partidos tiveram de começar a oferecer propostas que atraíssem pessoas de outras classes sociais. Tiveram de concorrer para conquistar todo tipo de eleitor, por isso o apelo ideológico se enfraqueceu muito.

ÉPOCA - Isso explica por que o candidato se apresenta como produto de consumo.
Leôncio -
O marketing nas eleições passou a ser uma coisa bastante importante. Os partidos diminuíram suas diferenças ideológicas: eles não estão mais interessados em convencer ideologicamente, mas em ganhar eleitores. Isso acontece em todo o mundo ocidental, não só no Brasil. Com algum atraso, nós começamos a viver esse processo de transformação, que leva os partidos a procurar mais o centro, onde está a maioria dos eleitores, porque não querem ser partidos de minorias.

ÉPOCA - É por isso que o PT se afasta da esquerda?
Leôncio -
Se o PT insistisse em ser um partido dos trabalhadores, entendendo trabalhador como operário fabril, ele perderia muitos votos porque a classe operária empobreceu e se reduziu. O PT pegou a pérola da coroa, que é a Presidência da República, em uma circunstância específica, em uma aliança com a direita e sem maioria no parlamento. O trato com os grupos de esquerda mudou porque o PT precisa governar e agora pode dividir as vantagens do poder, que são muitas. Você vê aí as nomeações de sindicalistas para cargos com salários altíssimos. O PT pode distribuir cargos e vantagens. Em vários escalões de poder há uma distribuição de benefícios, que é comum a todos os partidos que chegam ao poder. A diferença grande em relação aos outros partidos é que o pessoal do PT é muito ideologizado, prometia muito e veio mais de baixo. Então os petistas são mais vorazes.

ÉPOCA - Por que o senhor diz isso?
Leôncio -
Os petistas são mais vorazes porque vieram mais de baixo. Nos outros partidos, cujos quadros vieram mais de classes alta e média, a voracidade, a pressão por esses cargos de terceiro, quarto escalões, não é tão forte, pois os salários não são altos. Esses cargos também não representam para eles ascensão social. Mas, para o pessoal do PT, sim. Eu não estou entrando aqui na questão da apropriação indébita. Estou dizendo o seguinte: para uma série de pequenos cargos e outros benefícios da distribuição de vantagens, a maioria dos militantes do PT veio mais de baixo, por isso é mais voraz e está se lambuzando mais com o poder.

ÉPOCA - As nomeações políticas, em vez de técnicas, para as agências reguladoras são exemplos disso?
Leôncio -
A distribuição de cargos no aparelho estatal é habitual. Mas, no Brasil, por um lado, a distribuição de cargos públicos parece exagerada e, por outro lado, o pessoal petista, comparativamente de classe mais baixa, parece mais voraz. Vejo dois motivos principais. O primeiro é que o viés socialista de controle da economia requer partidários na direção do Estado. O outro é recompensar os amigos e aliados.

ÉPOCA - Por que o PT dá tanto tiro no pé, como no caso da eleição do presidente da Câmara?
Leôncio -
Se as disputas existem e extravasam para os meios de comunicação, é porque o presidente, por alguma razão, é tolerante com as fricções e disputas palacianas. Pode ser porque não consiga controlá-las, pode ser que as rivalidades internas cumpram alguma função para a manutenção da autoridade presidencial. No caso da Câmara, acrescente-se a ambição pessoal pela posse de um posto que traz muitos benefícios políticos e vantagens materiais. Esses fatores existem sempre nas disputas por cargos importantes. O grave, no caso, é o fato de o presidente não conseguir controlar as pretensões da bancada do próprio partido. De todo jeito, pela resistência da bancada petista ao deputado Luiz Eduardo Greenhalgh (PT-SP), a escolha do partido parece não ter sido feliz.

ÉPOCA - Desde que assumiu, o governo já criou dezenas de comissões e grupos de trabalho. Esse sistema de administração é eficiente?
Leôncio -
É o pior sistema possível. Comissões e grupos de trabalho são coisas paralisadoras, nas quais ninguém é responsável por nada. Todo mundo sabe que comissões e grupos de trabalho em excesso aumentam a já tradicional lentidão da burocracia governamental brasileira. Os ministros e os que têm de tomar decisões políticas importantes perdem seu tempo nessas comissões. As reuniões são difíceis de agendar porque os ministros viajam e mandam outros substituí-los. Mas esses não têm autoridade para decidir. O resultado é maior paralisia da administração. Mas o PT adora comissões. Elas dão a impressão de muito trabalho. Mas são como um automóvel com o motor ultra-acelerado, mas com o câmbio em ponto morto.

ÉPOCA - Como governo, o PT tem se mostrado pouco tolerante em relação às críticas. É uma característica?
Leôncio -
Além da influência da Igreja, os partidos de esquerda são, em boa medida, fundamentalistas: eles acreditam que têm uma razão histórica de ser todo o bem. Conseqüentemente, quem está contra é o portador do mal, que deve ser esmagado. A esquerda não é pluralista: nenhum regime de esquerda foi pluralista.

Eric Feferberg/AFP

ÉPOCA - A portaria que obriga o IBGE a apresentar suas pesquisas antes ao governo é um sinal disso?
Leôncio -
Sim. O governo e a direção do IBGE negam a censura. Mas, conhecendo o passado socialista recente do PT, a dificuldade da esquerda em conviver com o pluralismo político e o pronunciamento do presidente sobre ä os resultados de outra pesquisa do próprio IBGE sobre o excesso de peso dos brasileiro, é óbvio que se olhe com muita desconfiança essa nova portaria do governo federal. Se não há intenção de censura, qual a razão da medida? As explicações do governo não são convincentes. Além dos projetos da Ancinav e do Conselho Federal de Jornalismo, vale lembrar o caso da expulsão do jornalista do New York Times. O próprio projeto sobre o ensino superior desperta desconfiança quando prevê formas de intervenção ''popular'' e ''democrática'' sobre as universidades. Aliás, essas duas palavras usadas como adjetivo para definir regimes e instituições servem para esconder as piores ditaduras. Quem não se lembra das repúblicas populares e democráticas dos países do socialismo real?

ÉPOCA - Há uma tendência de fazer política com menos ideologia. Isso explica o fato de que políticos como o governador de São Paulo, Geraldo Alckmin, invistam na imagem do bom administrador?
Leôncio -
Com o enfraquecimento da capacidade de mobilização das mensagens puramente ideológicas, os candidatos têm de enfatizar a eficiência, a honestidade, capacidade de trabalho, experiência administrativa etc. O governador paulista procura se adequar às tendências da época. Não ter uma marca ideológica forte pode ser uma vantagem. Alckmin tem uma imagem de bom administrador, de uma pessoa de quem o eleitor compraria, sem receio, um carro usado. A estratégia pode ser muito adequada a sua figura de político. Se, como parece, as eleições de 2006 forem bem pouco ideológicas, quem for capaz de convencer a maioria do eleitorado de que é mais competente, sério e honesto terá mais chance de vencer.


ÉPOCA - O senhor diz que os partidos tendem a caminhar para o centro. Os de esquerda já fazem isso. Os de direita farão o mesmo?
Leôncio -
Claro que sim. Eles terão de mudar para não parecer conservadores, antipopulares ou reacionários. Mas isso não significa que vão abraçar todas as teses da esquerda. Como a opção socialista desapareceu do horizonte, a diferença entre o que chamamos de direita e esquerda está no espaço e na importância que dão a certos temas e no modo como são tratados.

ÉPOCA - Como é possível misturar duas coisas tão diferentes, como PP, PTB e PT num mesmo governo?
Leôncio -
Há diferenças sociais entre eles: PFL e PP recrutam mais entre a classe empresarial, e o PT entre trabalhadores. Mas essa gente que vira político profissional é diferente. Um empresário ou sindicalista que virou político profissional mudam do mesmo jeito. O metalúrgico que é deputado pela quarta legislatura não é mais metalúrgico, ele é político. A profissionalização do político homogeneíza: todos passam a viver da política, o que impõe certas regras de conduta, de comportamento e a mesma fonte de renda.

ÉPOCA - As elites aceitam Lula ou ainda existe preconceito contra o presidente?
Leôncio -
Quando o PT surgiu, Lula não só era tolerado por uma enorme parte da classe empresarial como, em alguns momentos, até incentivado por ela. Recentemente notei mesmo certo deslumbramento de alguns integrantes da grande burguesia com o ex-metalúrgico que ascendeu e entrou para a elite. Pode ser apenas o encanto que emana dos poderosos. Minha impressão, contudo, é de que o preconceito não é tanto com relação às origens familiares do presidente, mas quanto às condutas populistas.

ÉPOCA - Alguns políticos defendem o fim da reeleição e estabelecimento de um mandato de seis anos para o presidente. O que o senhor acha?
Leôncio -
Mudanças freqüentes das regras do jogo democrático não contribuem para a estabilidade política e para o desenvolvimento econômico. Minha opinião é de que mudanças devem ser feitas com moderação. As grandes democracias do mundo, a Grã-Bretanha e os Estados Unidos, fizeram poucas alterações em seus sistemas eleitorais, apesar dos problemas que ambos os sistemas carregam. Mas as mudanças políticas decorrem de interesses dos setores majoritários dos políticos.

ÉPOCA - Quando voltar à oposição, o PT será tão radical quanto antes?
Leôncio -
Parece-me difícil. O PT está degustando o sabor do poder. É difícil o retorno para o radicalismo da juventude. O PT cresceu, tornou-se uma organização complexa, burocratizou-se e seus dirigentes envelheceram. A idade é uma variável que deve ser levada em conta: não há revolucionário idoso. Outro fator vem do fato de os principais dirigentes do PT terem ascendido social e economicamente. Já fazem parte da elite política e da classe alta. Como eles dizem, o ''partido amadureceu''.

ÉPOCA - O ex-presidente Fernando Henrique Cardoso tem criticado o governo Lula. É normal que um ex-presidente faça isso?
Leôncio -
Fernando Henrique não encerrou sua carreira política e tem toda legitimidade e autoridade para se pronunciar. Mas suas críticas acabam soando normais quando o partido que conquista o poder passa a atribuir ao anterior todas as dificuldades e todos os problemas que não consegue resolver. Lembra o regime soviético, que procurava vender a idéia de que todas os aspectos negativos existentes no socialismo eram devidos ao passado capitalista e czarista.


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