A comédia da vida pública
Daniel Piza
A semana política foi cheia, o que em geral significa que nosso vazio se ampliou. Votações, discursos, encontros e projetos deram bastante material às páginas de política, embora devessem estar nas de humor. É vã a esperança de fazer os homens felizes por meio da política, escreveu Carlyle em seus diários. Mas que outro tema pode fazê-los rir assim, todos os dias, mais de uma vez ao dia, incluindo fins de semana? A comédia da vida pública brasileira, como as telenovelas, se arrasta até o previsível desfecho, mas, ao contrário delas, mostra o ridículo da humanidade com eloqüência única.
Veja, leitor, o circo parlamentar. Seus palhaços e malabaristas são profissionais 24 horas. Olha como o PMDB executa a coreografia governista com precisão. Admire-se com o crescimento do Partido Republicano (sic), fusão do Partido Liberal (sic, de novo) com o Prona (aquele de um dos maiores comediantes do País, Enéas , o Ronald Golias do horário eleitoral). Mas não espere por investigações sobre eventuais apoios financeiros a esses aliados, do tipo mensalão (segundo a ópera-bufa de Roberto Jefferson) ou sacolão (assim rebatizado por José Alencar; não o escritor José de Alencar, o vice-presidente), afinal o que todo mundo faz é o que ninguém vê.
E não é que Collor, ator que só admitia papel de herói, agora assume o de mártir? Revelou enorme talento para o 'understatement', para a frase que diz menos do que quer dizer, ao falar no púlpito do Congresso sobre sua destituição de 15 anos atrás; mostrou arrependimento pelo confisco nada liberal da poupança dos brasileiros, mas se disse inocentado pelo STF. E ganhou aplausos de Renan Calheiros, do tucano Arthur Virgílio, até do petista Aloizio Mercadante. 'Merde pour toi!', pareciam dizer, repetindo o desejo de boa sorte dos atores ao colega. A imprensa registrou a cena como se fosse realista. Sorte nossa é que outro grande ator, Pedro Simon, com 'timing' de Walter Matthau, dias depois subiu ao mesmo palco para lembrar o distinto público uma por uma as provas testemunhais e documentais da Casa da Dinda, aquele grande cenário inspirado em O Rei da Vela.
Collor que se cuide, porque outros veteranos passaram por plásticas mais sutis. José Sarney, como Chico Anysio, sabe se multiplicar em vários personagens, sem deixar de ser o mesmo. Um de seus aliados, Edson Lobão (não o cantor, nem o aumentativo de 'lobby'), voltou a defender a criação do Estado do Maranhão do Sul, lá nas paragens que a família do ex-presidente costumava dominar. Ao se manifestar sobre o assunto, o autor de Saraminda e aliado de Lula disse que em sua região é conhecido por ser contra o projeto, embora nacionalmente seja conhecido por ser a favor. Ou seja: em vez de dizer se é a favor ou contra, ele diz que é conhecido por ser ambos. E tudo no mesmo tom de voz, sem mover um fio do bigode. Isso, sim, é arte da representação.
Mas o protagonista, o farsesco maior, é, claro, quem tem mais falas. Lula, como um ex-aprendiz e ex-inimigo de Sarney e Collor - a quem recebeu no mesmo Palácio do Alvorada que disputaram como mocinho e bandido em 1989, enquanto o muro de Berlim caía -, elogiou os usineiros, agora 'heróis do mundo'. Depois de monólogos brilhantes nas semanas anteriores - 'Quem não gosta do Brasil que vá embora', 'A massa encefálica dentro do meu cérebro' e 'A educação do Brasil é das piores do mundo' - e de referências ao ponto G (com gesto e tudo), o compósito de Mazzaropi e Peter Sellers também disse que não aceitaria mais erros na nomeação do Ministério. O tal Balbinotti, latifundiário da soja e suspeito de forjar empréstimos no Banco do Brasil, precisou deixar o elenco. Não ocorreu a Lula que teve pelo menos 100 dias para definir sua 'nova' equipe, tempo de ensaio inédito em todas as latitudes políticas.
Divulgou-se também que Lula fez reunião para resolver o apagão aéreo. Na reunião estava a cúpula da Infraero, aquela mesmo que disse no dia seguinte que não existe crise nos aeroportos, como se todas as horas de espera e abuso sofridas pelos cidadãos fossem ilusionismo. E que está sendo investigada pelo Tribunal de Contas da União por licitações suspeitas e por dar dinheiro para uma conferência sobre água (não sobre ar) do MST (não o movimento dos sem-água) -, o que qualificou de 'função social'. Em vez de montar uma força-tarefa para resolver o apagão, Lula prefere o jogo de cena. E, no mesmo Congresso que mandou barrar a CPI do setor, aplaude o aumento de seu próprio salário e de todos os políticos. Ri melhor quem ri com o dinheiro dos outros.
A ARTE DE VER (1)
Quem viu o ridículo humano como poucos foi Goya (1746-1822), de quem o Masp expõe quatro séries de gravuras pertencentes à coleção Caixanova: Os Desastres da Guerra, Os Caprichos, Os Disparates e Tauromaquia. É um prazer vê-las juntas, ainda que sob iluminação insuficiente, assim como é um prazer ver o Masp ativo de novo, com a curadoria de Teixeira Coelho. Não caia nessa de que Goya é o maior dos gravuristas, porque fazer diferente de Rembrandt não é o mesmo que ir mais fundo do que Rembrandt; tampouco desdenhe o pintor em face do gravurista. Mas o que essas gravuras têm é uma velocidade de expressão, um humor satírico que transcende a ilustração e nos faz rir e chorar do gênero humano, como um Swift ou Voltaire das artes visuais. Iluminista e pessimista ao mesmo tempo, Goya foi, muito mais que David, o primeiro moderno.
A ARTE DE VER (2)
Não se fica indiferente diante de uma fotografia feita por Miguel Rio Branco. A exposição inaugurada na galeria Millan, em São Paulo, tem fotos preto-e-branco que parecem ter a mesma densidade, a mesma saturação de suas fotos em cores. Seu interesse nem complacente nem glamourizante por personagens como prostitutas, pugilistas e bêbados, por bichos, carcaças e descascados, pelas texturas deterioradas e sombrias, produz um mundo barroco sem esperança de redenção, uma narrativa que ao mesmo tempo aceita e angustia. Há uma força em seu imaginário que é rara na cultura visual brasileira.
RODAPÉ
Luz em Agosto, de William Faulkner (editora Cosac Naify), é meu preferido ao lado de Enquanto Agonizo, porque são dois romances em que as cenas fortes se combinam com a linguagem inventiva. Todos os personagens carregam fantasmas, uma memória de culpas e traumas que não deixa nem que os solitários e inocentes escapem de suas conseqüências. O mulato Joe Christmas é um personagem trágico, mas sem a perspectiva do reequilíbrio depois da expiação. Seu mergulho na humilhação, no abandono, fome e insônia, é uma façanha descritiva que Celso Mauro Paciornik traduziu muito bem:
'Percebeu que estava tentando calcular o dia da semana. Era como se agora e por fim tivesse uma real e urgente necessidade de marcar os dias transcorridos para algum propósito, algum dia ou ato definido, sem errar para menos nem para mais. Entrou no estado de coma em que o sono agora havia se transformado com a necessidade em mente. Quando despertou no cinza orvalhado da aurora, aquilo estava tão cristalizado que a necessidade não lhe pareceu mais estranha.'
CADERNOS DO CINEMA
O novo Woody Allen, Scoop, que vi no avião enquanto voltava, está mais para a diversão-pastiche de O Escorpião de Jade do que para Match Point, seu filme anterior, também passado em Londres e com Scarlet Johansson. Que uma repórter inexperiente e um mágico 'gaffeur' possam ir mais a fundo numa apuração jornalística do que veteranos estabelecidos, graças ao fantasma de um repórter que não desiste do 'furo', é uma ironia típica de Allen. Faltam gags verbais e visuais, mas um Woody Allen mediano é sempre mais agradavelmente inteligente do que quase todos os outros filmes.
No avião vi também alguns desses 'outros' filmes recentes, como 007, mais atlético e infelizmente menos irônico, e Dreamgirls, de uma previsibilidade gritante e gritada. Quanto a Beethoven, parei de ver assim que a copista corrigiu o tema principal da Nona Sinfonia.
POR QUE NÃO ME UFANO
Os especialistas dizem que os novos métodos de cálculo do PIB pelo IBGE atendem a uma transformação da economia nos anos mais recentes, com o aumento da importância dos serviços, como telecomunicações e informática. Faz sentido. O que não faz sentido é que, além de não ter aberto espaço para um debate da sociedade antes da mudança, o governo comemore os números corrigidos dos últimos quatro anos, já que esse universo de dados não foi colhido antes de 2000 e que tais setores tenham dado um salto graças ao governo anterior, com suas 'malditas' privatizações. Os resultados continuam medíocres; naquele que mais importa, o dos investimentos, só ficaram piores.
E-mail: daniel.piza@grupoestado.com.br Site: www.danielpiza.com.br
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