desmiscigenar
o Brasil
A pretexto de reforçar a identidade cultural das
minorias, o governo do PT induz à divisão étnica
da sociedade e faz uma reforma agrária paralela
Cíntia Borsato e José Edward
André Dusek/AE |
A ministra Matilde Ribeiro: ela ganha para combater o racismo, mas acha "natural" que negro discrimine branco |
Desde que foi nomeada ministra da Promoção da Igualdade Racial, em março de 2003, a assistente social Matilde Ribeiro submergiu na rotina pasmacenta da burocracia de boas intenções de Brasília – também existem ministérios para os pescadores, para os portos, para a mulher e para o turismo. A tarefa de Matilde guarda, no entanto, uma peculiaridade. Num país fortemente miscigenado, onde mazelas sociais se sobrepõem a diferenças raciais, é muito difícil, se não impossível, definir quem integra qual raça e quais etnias devem receber proteção do estado – prova disso é a polêmica em torno das cotas raciais em universidades e escolas. Na semana passada, a ministra Matilde tornou sua missão ainda mais complicada ao externar, numa entrevista à BBC Brasil, uma de suas concepções. Disse a ministra: "Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso". Para Matilde, portanto, é "natural" que negros discriminem brancos.
A declaração, que flerta com o crime de incitação ao racismo, mostra o despreparo da ministra para o exercício de seu cargo ou de qualquer outra função pública. Mas não deveria ser vista de forma isolada. Desde seu início, o governo do PT alimenta a diferenciação racial no Brasil a pretexto de reforçar a identidade cultural dos negros e reparar injustiças históricas. A parte mais explosiva dessa política de desmiscigenação não está nas cotas universitárias nem na declaração infeliz da ministra. Está na subordinação da reforma agrária a critérios étnicos e raciais. Nos últimos quatro anos, uma seqüência de medidas e decretos presidenciais induziu os brasileiros a se dividir em comunidades, cores e guetos raciais e ofereceu a cada um desses grupos o direito de pedir a desapropriação de terras hoje ocupadas por empresas, famílias e até ONGs. Tudo começou em 2003, quando, contrariando a Constituição, um decreto do presidente Lula permitiu aos descendentes dos antigos moradores de quilombos exigir do Instituto Nacional de Colonização e Reforma Agrária (Incra) o direito de receber o seu pedaço de chão. O decreto revogou um anterior, do governo FHC, que limitava o pleito aos descendentes de quilombolas que morassem nas áreas a ser requisitadas. Lula eliminou essa exigência, dispensou a chancela de laudos antropológicos e permitiu que a desapropriação seja conduzida após uma simples autodeclaração dos interessados. Resultado: desde que o decreto foi alterado, explodiu o número de comunidades que se auto-intitulam quilombolas, de 840 para cerca de 3.000. Com isso, a área potencialmente demarcável já chega a 20 milhões de hectares, o equivalente ao território do Paraná (veja o quadro). Um segundo decreto, de fevereiro passado, estendeu o direito dos quilombolas a outros grupos "tradicionais", como comunidades de terreiros urbanos, quebradeiras de cocos babaçu e pomeranos, entre outras.
Conforme o Incra avança na demarcação das terras, os conflitos começam a pipocar. Nos municípios de Campos Novos e Abdon Batista, na região serrana de Santa Catarina, o Incra deve desapropriar e entregar a quilombolas cerca de 8.000 hectares pertencentes a oitenta pequenos produtores rurais. Até o início do século passado, a área realmente pertenceu a ex-escravos. Mas eles não eram refugiados, e sim alforriados. Ganharam as terras como doação de seu antigo senhor e as venderam nos anos seguintes, em transações registradas em cartório. Mas o conflito não se restringe a pequenos produtores. Tome-se o caso da Aracruz, a maior exportadora de celulose do país, alvo constante dos sem-terra e de índios. Desde 2003, supostos quilombolas passaram a exigir a desapropriação de terras da empresa em 31 municípios de quatro estados. "A questão é bem mais preocupante do que a dos índios. Os índios vivem, em sua maioria, na Amazônia ou em áreas nativas, de preservação ambiental. Mas os quilombolas reivindicam terras que são ocupadas há anos por fazendas produtivas", afirma Carlos Alberto Roxo, diretor da companhia.
No Rio de Janeiro, até uma escola financiada pela organização católica Venerável Ordem Terceira de São Francisco da Penitência corre o risco de ser desapropriada a pedido de supostos remanescentes de um quilombo. A entidade afirma ter a posse do terreno, localizado no centro da cidade, desde 1704. Além disso, diz ter provas de que nunca houve nenhum quilombo na região. "Se quilombo é local de refúgio, como poderia existir um ao lado do porto do Rio, onde existiam muitos capitães-do-mato?", questiona Tatiana Brandão, advogada da entidade.
O próprio governo, que divulgou seus decretos com as intenções mais nobres, não esconde o uso da questão racial como instrumento para desapropriar terras, produtivas ou não. Afirma o presidente do Incra, Rolf Hackbart: "Não tenha dúvida: trata-se de uma reforma agrária paralela". Até o momento, já foram delimitadas 53 áreas, que somam 326.000 hectares. E há outros 492 processos correndo no Incra. Isso só de quilombolas. Mas há também os seringueiros, os caiçaras, os pescadores artesanais... Seria risível, se não fosse dramático.