Ainda bem que nem tudo está perdido; a música salva as esperanças e as horas perdidas
De todas as bobagens governamentais de que tomei conhecimento ultimamente — e que não foram poucas — nada, nem mesmo o Ponto G da estupidez, barra a proposta do governo do estado de conceder bolsas especiais às famílias dos menores infratores.
A idéia seria, se bem entendi, “reconstruir os laços familiares para reintegrar os menores à sociedade” — como se a desintegração familiar fosse única e exclusivamente uma questão financeira, e como se todos os menores infratores fossem filhos de chocadeira.
Eu gostaria de saber de que mente iluminada saiu essa idéia. Quem foi o gênio que criou este incentivo explícito à criminalidade?! Como se não bastasse tudo o que nos acontece rotineiramente neste país, teremos, pela primeira vez, menores infratores estimulados pelos pais graças a uma ação de governo: — Cumequié?! Foi à escola, cachorro?! Quer dizer que não assaltou ninguém, não estuprou ninguém, não matou ninguém?! É assim que tu cuida da tua família, desgraçado?! A miséria não é boa conselheira, sabemos todos, mas, pelo visto, tampouco o é a vida de privilégios do poder. Imaginar que uma esmola entre R$ 15 e R$ 90 mensais possa tirar um menor (de 1m80) do crime é não ter a mais pálida noção da vida aqui fora; e é ter o mesmo incompreensível preconceito contra a pobreza manifestado pelo presidente Lula, quando diz que o crime, às vezes, “é questão de sobrevivência”.
Ora, a pobreza, em si, não leva ninguém ao crime — ou não, pelo menos, ao tipo de crime que nos tem horrorizado. Ninguém arrasta uma criança por sete quilômetros premido pela pobreza, ninguém mata friamente por pobreza, por pobreza ninguém toca fogo em ônibus cheio de passageiros.
Pelo contrário. Há proporcionalmente muito mais gente digna e honesta nas comunidades carentes do que no Congresso Nacional, na Assembléia Legislativa ou nos palácios de Brasília. Aliás, penso que seria muito instrutivo comparar o percentual de pobres às voltas com a Justiça com o percentual de políticos que (não) respondem a processos.
De qualquer forma, a absurda proposta da Bolsa Bandido revela a total inversão de valores que se estabeleceu neste país, onde os criminosos recebem muito mais atenção, recursos e conforto das autoridades do que as vítimas. Antes de falar em bolsas para famílias de menores infratores, o Estado deveria falar em bolsas para famílias de vítimas da violência; antes de oferecer um duvidoso apoio psicológico às famílias de menores infratores, o Estado deveria, isso sim, pensar nas famílias que, de um momento para outro, foram despedaçadas porque lhes faltou um mínimo de segurança.
Da última vez que escrevi sobre isso, logo depois do brutal assassinato do menino João Hélio, estava convencida de que reduzir a maioridade penal para 16 anos era uma providência tão urgente quanto necessária. Depois de ler a quantidade de artigos e discussões que se seguiram ao crime, mudei ligeiramente de ponto de vista. Continuo achando um absurdo que uma pessoa possa votar, mas não possa ser responsabilizada pelos seus atos; também continuo convencida de que um adolescente de 16 anos sabe perfeitamente distinguir o certo do errado, e o bem do mal. Continuo, em suma, achando que a virtual inimputabilidade do dimenor de 16 anos é um dos sintomas de uma sociedade suicida. Só que passei a achar a própria idéia de maioridade penal defasada da realidade. Hoje concordo com os que propõem que as penas sejam aplicadas de acordo com os crimes praticados, e não com a idade dos criminosos que os praticam.
Faz tempo que cultivo um plano de estimação: dar, toda semana (ou, pelo menos, sempre que possível) uma dica de livro, filme, CD, DVD — enfim, de algo que tenha mexido comigo.
Mas entra semana, sai semana, já estamos em março de 2007, e eu aqui, atropelada pela realidade, ainda sonhando com o meu “momento cultura”.
Pois decidi que de hoje não passa, até por um motivo especial: ontem, se nada tirou o mundo dos trilhos, tive o prazer e a honra de entregar um dos prêmios “Faz Diferença” a duas amigas muito, muito queridas, Kati Almeida Braga e Olívia Hime, merecedoras de todas as homenagens por fazerem da Biscoito Fino a espetacular gravadora que é.
Acontece que a Olívia, mal sabe ela, foi comigo ao Norte, e me embalou nas longas esperas em aeroportos, que sem a felicidade da música seriam ainda mais demoradas. Não digo “embalou” à toa; a voz da Olívia tem esse encanto indefinível e maternal de quem nina, mesmo quando ama, sofre ou festeja.
Há semanas o player do meu celular (gente moderna é assim) toca, em loop, “Palavras de Guerra”. Ainda que não fosse um legítimo Olívia Hime, este CD já me teria ganho pelo título: as letras de todas as canções são de Ruy Guerra. Caramba! A gente sabe que o homem é bom, mas esquece. É preciso mesmo uma coleção dessas para dar uma chacoalhada e fazer com que a gente se lembre.
Entrevista:O Estado inteligente
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