Artigo - ROBERTO DaMATTA |
O Globo |
28/3/2007 |
"Épossível fazer política com P maiúsculo, e é possível construir um país pensando nos próximos 20 anos e não apenas nos próximos quatro anos." A frase grandiloqüente é do presidente Lula quando - um tanto contrafeito - acabou de empossar mais uma penca de ministros deste seu segundo governo. Uma administração muito mais voltada pela conta de chegar entre a construção de sua figura como uma entidade suprapartidária e as siglas políticas que, pelo visto, pesam cada vez menos no cenário político nacional. Falar dos próximos 20 anos é, para muitos, um sintoma de zelo pelo país; sinal de que se deve transcender a política das paixões partidárias e partir para o que interessa ao país; para outros, seria o sintoma de mais um plano oculto no melhor estilo mensalão. Eu penso de outro modo. Para mim, acenar com 20 anos para a frente, justo no início tardio de uma administração que começa cansada, revela o nosso penhor pelos grandes eventos, a nossa obsessão pelo futuro e, por contraste, o nosso desdém pelo presente, pelo que está em nossa volta em forma de segundos, horas e minutos. Preferimos semanas a dias, anos a meses e séculos a décadas; do mesmo modo e pela mesma lógica, preferimos transpor, por exemplo, o São Francisco e construir Brasília, do que fazer um sistema escolar impecável ou uma campanha nacional para civilizar o trânsito. Desde que me entendo por gente, ouço falar de um Brasil do futuro, mas nada escuto do futuro do Brasil. Nos quadros de uma geração nascida nos anos 30 do século passado, a fórmula "Brasil, país do futuro" continha uma dupla promessa. Era, em primeiro lugar, a certeza do branqueamento definitivo do "tipo racial brasileiro" que, finalmente, seria tão ou mais alvo do que a Branca de Neve, liquidando com as chamadas "taras de origem" invocadas pelos nossos pensadores sociais anti-sociológicos, dentro dos quadros de um racismo (ou de um anti-racismo) que até hoje discute raça sem falar do legado e da experiência da escravidão. Em segundo lugar, a previsão passava pela promessa das transformações econômicas ou infra-estruturais que, na sua mudança, arrastariam consigo todo o sistema. Para nós, o futuro tinha dois lados. Um deles ficava na biologia racial, quando pressupunha que a mistura, além de democrática e gostosa (quando o branco comia as negras), branqueava; o outro, encontrava-se no chamado "determinante econômico", essa outra esfera "trans", "infra" ou "a-social" que pertencia ao social, mas dele - como o desejo e o pecado - escapava. O dado concreto, entretanto, para pôr numa crônica de jornal uma longa história e, nela, uma nova perspectiva, é que tanto o biológico que regulava as raças, quanto o econômico que regulava o sistema de poder escapavam da vontade humana. Ambos tinham razões que a razão desconhecia. Sobretudo a tal "razão política" que, entre nós, sempre vai para o pior lado e se veste com o pior uniforme. A ênfase é sempre no futuro. Nos 20 anos do Lula; ou nas calendas do fim da história dos velhos marxistas. Nelas - e esse é o ponto que quero salientar - troca-se o presente pelo futuro; abre-se mão do aqui e agora, pela fantasia virtual do lá a do depois. No vasto, triste e sábio anedotário político nacional, o amanhã tem um lugar todo especial. O resultado é isso que se vê: a total incapacidade de gerenciar o mundo diário que vai se deteriorando a olhos vistos. Temos formidáveis promessas de futuro, mas um presente pífio, regado a descaso e a abandono. Todos os governantes, em todos os níveis, preferem governar para o futuro, freqüentemente deles mesmos, do que para o cotidiano dos seus eleitores. O futuro, sempre risonho, aponta para uma felicidade desconectada do presente. Ora, a cobrança da conexão entre presente e futuro chama-se responsabilidade - essa palavra feia para quem o poder brasileiro dá, entre outras coisas, o dom da onipotência e o dom de ficar somente na promessa. O amor pelo futuro nos desculpa pela aversão que temos ao cotidiano. Mudemos todo o sistema e, quando isso ocorrer, seremos finalmente brancos, civilizados, ricos e felizes. Mas não me perguntem como se muda o sistema, porque essa é uma questão muito complicada, já que o "sistema" tem motivos desconhecidos. Tudo, como sabemos à exaustão, depende do "social", mas como mudar o social? É, pois, revelador quando Lula acena com duas décadas. Ou quando um partido pensa em mil anos e um outro na eternidade. Pois os liberais, nascidos do realismo moderno, e do puritanismo protocalvinista, sempre falam em termos de administrações e do momento presente. Mas nós, latinos, apaixonados pelas hierarquias centralizadoras e crentes que o mundo tem soluções acabadas (no futuro...), pensamos ao longo de governos e de décadas. Para os liberais calvinistas, pequenos e práticos, a mudança se faz por meio de incrementos - os meios e os fins estão calibrados e seguem em relação. Para nós, messiânicos, como tudo vai mesmo dar certo, a aversão pelo presente assevera um belo futuro. Ao fim e ao cabo, e qualquer que seja o meu exagero, o certo é que temos um viés: trocamos o amanhã pelo agora, substituímos o que é pelo que deveria ser. Sendo assim, enquanto vamos falando da cura pelo futuro, somos derrotados pelas rotinas que recusamos gerenciar. |
Entrevista:O Estado inteligente
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quarta-feira, março 28, 2007
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