Declaração da titular da Secretaria da Igualdade Racial provoca polêmica no governo e nos meios acadêmicos
Vannildo Mendes e Roldão Arruda
Causou desconforto no governo uma declaração da ministra Matilde Ribeiro, da Secretaria Especial de Política da Promoção da Igualdade Racial, para quem é natural a discriminação de negros contra brancos. Em entrevista à BBC Brasil para lembrar os 200 anos da proibição do comércio de escravos pela Inglaterra, ela afirmou que “não é racismo quando um negro se insurge contra um branco”. E explicou: “Quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou.”
Houve reações dentro e fora do governo. “Como negro, não alcanço o sentido de tão estranha declaração”, criticou Percílio de Sousa Lima Neto, vice-presidente do Conselho de Defesa dos Direitos da Pessoa Humana, órgão do Ministério da Justiça. Ele disse que condena qualquer tipo de preconceito, seja de negros ou brancos, mas avaliou que precisaria conhecer o contexto da entrevista “para emitir melhor juízo”.
O presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB), Cezar Britto, afirmou que há uma boa distância entre entender os processos que levam à discriminação e aceitar o preconceito. “Compreender o sistema perverso da escravidão e do preconceito decorrente dela é importante, para que o Brasil tenha de fato uma democracia racial”, avaliou. “Mas aceitar qualquer tipo de preconceito não pode ser medida eficaz no que se refere à democracia racial.”
Manolo Florentino, estudioso do tema na Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), lamentou a declaração. “O mínimo que se pode exigir de um ministro dessa pasta é que saiba que raça não existe”, afirmou. “A luta de negros contra brancos é um conflito social, não passa pela cor da pele.” Para ele, a ministra enxerga “um País bicolor”, o que nega toda a história de miscigenação brasileira.
A rigor, a declaração de Matilde Ribeiro contraria o Estatuto da Igualdade Racial, aprovado no Senado em junho do ano passado e hoje em discussão na Câmara, com apoio da secretaria. É verdade que o texto estabelece cotas raciais nas universidades e prevê o acesso de minorias étnicas à Justiça. Mas o estatuto define como discriminação racial “toda distinção, exclusão, restrição ou preferência baseada em raça, cor descendência ou origem nacional ou étnica”. Portanto, não importa se o autor é branco, negro ou de outra raça ou cor da pele para ser enquadrado como racista, ficando sujeito a processo criminal.
Integrantes do governo envolvidos no combate ao preconceito ficaram constrangidos. O secretário nacional de Direitos Humanos, Paulo Vannuchi, evitou comentar o assunto. Representante da Associação Brasileira de Imprensa (ABI) no conselho do Ministério da Justiça, Marcelo Tognozzi disse ter ficado perplexo: “Acirrar conflitos nunca é bom. Todos nós, não-racistas, não podemos concordar com tal afirmação.”
A ministra também recebeu manifestações de apoio. Na coordenação do Núcleo de Consciência Negra da Universidade de São Paulo (USP), Zélia Dias de Andrade afirmou que a ministra apenas se referiu à realidade do País. “Não é que sejamos racistas”, disse. “Mas a partir do momento em que os brancos cortam nossas oportunidades é natural que surjam reações contrárias.” Para Zélia, o racismo do negro contra o branco é sutil, assim como o inverso. “Os dois lados sabem disso, os dois lados disfarçam com uma camada de cordialidade.”
Frei David, franciscano que coordena o movimento Educafro, também defendeu a ministra. Observou que existem várias formas de racismo - entre elas a de negros contra brancos. Isso não quer dizer, no entanto, que o preconceito esteja aumentando ou em vias de aumentar. “Existe maturidade cada vez maior, entre negros e brancos, para analisar esta questão”, disse.
Diante da reação negativa, Matilde divulgou uma nota, por meio da secretaria, alegando que trechos da entrevista foram tirados de contexto, “induzindo o leitor a equívoco” (leia a nota ao lado).
A PERGUNTA
E no Brasil tem racismo também de negro contra branco, como nos Estados Unidos?
Eu acho natural que tenha. Mas não é na mesma dimensão que nos Estados Unidos. Não é racismo quando um negro se insurge contra um branco. Racismo é quando uma maioria econômica, política ou numérica coíbe ou veta direitos de outros. A reação de um negro de não querer conviver com um branco, ou não gostar de um branco, eu acho uma reação natural, embora eu não esteja incitando isso. Não acho que seja uma coisa boa. Mas é natural que aconteça, porque quem foi açoitado a vida inteira não tem obrigação de gostar de quem o açoitou.
A NOTA DA SECRETARIA
“Em relação à entrevista da ministra Matilde Ribeiro, divulgada pela BBC Brasil nesta terça-feira (27/3), esta Secretaria esclarece que a frase ‘não é racismo quando um negro se insurge contra um branco’ aparece no título de maneira descontextualizada, induzindo o leitor ao equívoco. A ministra deixa claro, no decorrer da conversa, que ‘não está incitando’ esse tipo de comportamento e afirma: ‘Não acho que seja uma coisa boa’. A afirmação apenas reconhece a histórica situação de exclusão social de determinados grupos étnicos no Brasil, prevalente após 120 anos da abolição, que pode, por vezes, provocar esse tipo de atitude - também condenável.
Esclarecemos, ainda, que a missão da Seppir é justamente tomar iniciativas contra as desigualdades raciais no país e formular políticas públicas de igualdade racial, de forma conjugada com os demais ministérios e em diálogo com diversos setores da sociedade civil. A Secretaria também atua no sentido da valorização e do respeito às diversidades, em um trabalho integrado com negros, indígenas, ciganos, judeus e palestinos em espaços como o Conselho Nacional de Promoção da Igualdade Racial e a Conferência Nacional de Promoção da Igualdade Racial, com a intenção de garantir a essas comunidades acesso a bens e serviços públicos, qualidade de vida e oportunidades iguais.”
COLABORARAM FABIANA CIMIERI e FELIPE WERNECK
'Negro brasileiro se sente oprimido'
Carlos Santana (PT-RJ), deputado federal
Entrevista
O deputado federal Carlos Santana (PT-RJ), da Frente Parlamentar da Igualdade e Promoção Racial, considera que a ministra se referiu, sem hipocrisia, a um problema que existe. Na opinião dele, o racismo de negros contra brancos é bastante forte no Brasil.
O senhor acha que existe racismo de negros contra brancos entre os brasileiros?
Sim. Ele existe e não é pouco. E a origem dele é a opressão. Nunca nos deram os mesmos direitos, como demonstram pesquisas feitas pelos brancos sobre oportunidades sociais, escolaridade. O negro brasileiro se sente oprimido.
O senhor acha que há uma tendência para a exacerbação deste racismo?
Não. O esforço este governo está fazendo com políticas, cotas, leis para a comunidade afrodescendente é uma forma de resgatar o que se perdeu lá atrás. Temos que continuar nesse caminho, procurando a igualdade racial.
Não acha que a conscientização dos negros sobre a exclusão social poderia agravar os pontos de conflito?
Quanto mais consciente, mais o negro percebe o quanto é marginalizado pelo branco - que representa a classe social dominante. Mas essa não é uma luta que se define pelo pigmento da pele. Temos pessoas com pele branca que assumem nossa luta. E também temos pessoas de pele negra que não assumem sequer que são negros. É o caso do Pelé, que nunca se manifestou a respeito de políticas afirmativas, de cotas para os negros nas universidades. Outras personalidades, como cantores, artistas, já se manifestaram, mas o nosso representante máximo nunca fez qualquer pronunciamento.
O senhor acha que estão ocorrendo avanços com a atual política do governo?
Houve avanços, mas ainda estamos muito atrasados. Houve um genocídio em nosso país e os passos para superar isso são muito lentos. No mundo inteiro existem políticas de cotas. No Brasil, quando se discute o assunto parece que estamos falando em matar alguém.
Como senhor viu a declaração da ministra?
Ela deve ser vista dentro de um contexto geral, da história do Brasil, que foi sempre contada sob o ponto de vista dos brancos. Segundo essa história, nós somos descendentes de escravos - e não de povos africanos, com sua cultura, suas tradições. A ministra vai contra a idéia que as classes dominantes tentam impor de que não temos um problema racial, mas social.